A discussão sobre a exigência de “adicionalidade elétrica” tem reaparecido de forma recorrente no debate setorial brasileiro, apesar de sua rejeição consistente ao longo dos últimos anos. Desde o trâmite do Marco Legal do Hidrogênio (PL 2308/2023, convertido na Lei 14.948/2024), essa cláusula foi analisada e suprimida após amplo consenso técnico e político de que não se adequa à realidade do sistema elétrico nacional.
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Outras tentativas de inserção dessa exigência já ocorreram em propostas legislativas anteriores, algumas de forma indireta, por meio de emendas estranhas ao texto original (os chamados “jabutis” no jargão popular). Em todas as ocasiões, a inclusão da adicionalidade foi considerada incompatível com o contexto estrutural e regulatório brasileiro, sendo sistematicamente retirada nos processos de consolidação dos textos legais.
Mais recentemente, o tema ressurgiu de maneira repentina durante a tramitação da MP 1304/2025, que trata da reforma do setor elétrico. A proposta de inclusão da adicionalidade ocorreu verbalmente, nos instantes finais de apreciação do relatório, sem debate técnico prévio, sem consulta pública e sem exposição de motivos formal. Essa forma de inserção, sem lastro técnico ou transparência, reforça o caráter oportunista e inconsistente da medida, que ameaça a previsibilidade e a segurança jurídica do ambiente de investimentos no país.
Conforme apontado por especialistas e bem entendido pelo senso comum, o retorno dessa tese reflete uma tentativa de impor ao setor produtivo uma obrigação artificial, descolada das reais condições de oferta e demanda de energia no Brasil, e que pode comprometer os objetivos nacionais de industrialização e descarbonização.
Fundamentação técnica e impactos sistêmicos
O conceito de adicionalidade elétrica pressupõe que novos empreendimentos consumidores intensivos de energia, como os de hidrogênio, amônia, metanol e fertilizantes verdes, somente poderiam utilizar energia proveniente de novos parques de geração renovável ainda a serem construídos. Essa exigência, embora teoricamente voltada à garantia de uma expansão limpa do sistema, não encontra respaldo técnico no contexto elétrico brasileiro.
O Brasil já possui uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com 88,2% de renovabilidade em 2024, segundo o Balanço Energético Nacional 2025 publicado pelo Ministério de Minas e Energia e pela Empresa de Pesquisa Energética. Desde 2004, o país mantém índices superiores a 70% de renovabilidade, e atualmente as fontes hidráulica, eólica e solar dominam a composição da matriz, com forte expansão das duas últimas nas últimas décadas.
Essa expansão, no entanto, não tem sido acompanhada proporcionalmente pelo crescimento da demanda, resultando em sobras estruturais de energia e episódios recorrentes de curtailment (cortes de geração) – em outubro de 2025, cerca de 8 GW de geração renovável foram temporariamente interrompidos. Esse fenômeno representa desperdício de energia limpa e subutilização de ativos já amortizados, impondo custos econômicos e sistêmicos relevantes.
Nesse cenário, a exigência de adicionalidade criaria um contrassenso regulatório: proibiria que novos consumidores utilizassem energia renovável já disponível e em excesso, impedindo a valorização de parques existentes e agravando o problema do curtailment. Trata-se, portanto, de uma medida antieconômica, ambientalmente ineficiente e contrária à lógica do sistema elétrico atual, que precisa, acima de tudo, de maior consumo e integração, não de restrições artificiais à demanda.
Além disso, a autoprodução de energia, instrumento consagrado na regulação brasileira, tem se mostrado essencial para a competitividade industrial, a previsibilidade de custos e a segurança de suprimento. Vincular essa modalidade à obrigatoriedade de “nova geração adicional” fragilizaria o modelo, desestimulando investimentos e limitando a modernização da infraestrutura elétrica.
Consequências para o setor de hidrogênio e novas indústrias
A imposição de adicionalidade teria impacto direto e devastador sobre o desenvolvimento dos primeiros projetos de hidrogênio de baixa emissão no Brasil. Esses empreendimentos, que se encontram em fase inicial de estruturação, dependem de contratos de fornecimento de energia renovável competitiva e já disponível para viabilizar seus modelos de negócio.
Ao condicionar o acesso à energia apenas a novos parques ainda não construídos, a adicionalidade retardaria o início das operações, elevaria custos e tornaria o Brasil menos atrativo frente a outros países competidores. Em termos práticos, “mataria os primeiros projetos de hidrogênio”, inviabilizando o amadurecimento da cadeia nacional e afastando investidores em um momento decisivo de posicionamento estratégico global.
O mesmo efeito seria observado em outros segmentos intensivos em energia e altamente estratégicos, como data centers, indústrias químicas e de metais críticos, que buscam países com matrizes renováveis consolidadas e marcos regulatórios estáveis para a instalação de suas operações.
Conclusão e recomendação
A Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV) reafirma seu posicionamento contrário à inserção de dispositivos de adicionalidade elétrica no ordenamento jurídico brasileiro. Essa exigência ignora o histórico de liderança do país na transição energética, despreza investimentos já realizados em geração renovável e cria barreiras artificiais à (neo)industrialização verde e à atração de investimentos estratégicos.
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O Brasil dispõe de condições únicas de renovabilidade, confiabilidade e diversidade energética. O papel das políticas públicas deve ser o de promover a eficiência do sistema, estimular o uso da energia limpa já disponível e criar um ambiente regulatório estável, previsível e competitivo.
Reforça-se, portanto, que a manutenção da racionalidade técnica e regulatória, livre de distorções conceituais como a adicionalidade, é condição indispensável para que o país consolide sua posição como líder global em energia renovável e em novos vetores como o hidrogênio verde.