No último dia 1º de novembro, o deputado Gilberto Abramo (Republicanos-MG) apresentou requerimento de urgência para o PL 4675/2025, a proposta de concorrência digital, que altera a Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) para inserir regras específicas sobre mercados digitais.
O requerimento foi incluído na pauta do plenário da Câmara e pode ser deliberado a qualquer momento. A urgência pleiteada não é atropelo ou açodamento: é um reconhecimento de que o Brasil dispõe hoje de uma proposta técnica e institucionalmente amadurecida. Também se traduz na premissa de que a defasagem normativa identificada na origem dessa iniciativa legislativa já suscita custos econômicos relevantes.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
De um lado, a velocidade de transformação dos mercados digitais, marcada pela integração entre plataformas, dados e inteligência artificial, exige instrumentos jurídicos e regulatórios compatíveis. De outro, a demora em modernizar o marco jurídico apenas amplia os custos da inação, reduzindo a competitividade das empresas brasileiras, perpetuando dependências tecnológicas e dificultando o florescimento de empreendedores digitais nacionais.
A aprovação do pedido de urgência é, portanto, requisito necessário para dotar o país de uma estrutura jurídica capaz de preservar a contestabilidade e a inovação em ambientes econômicos cada vez mais concentrados.
Um projeto fruto de um processo técnico e participativo, não um transplante jurídico
O PL 4675 é resultado de um estudo técnico aprofundado conduzido pela Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, que combinou benchmarking internacional, análise econômica detalhada e ampla consulta pública. O processo, que se estendeu por mais de dois anos, avaliou dez jurisdições (entre elas Reino Unido, Alemanha, Japão e União Europeia) e incorporou mais de 300 contribuições de entidades e especialistas.
O relatório final, publicado em outubro de 2024, apresenta um diagnóstico inequívoco. As ferramentas tradicionais do antitruste, centradas na análise ex post e na identificação de efeitos anticompetitivos em mercados lineares, mostram-se insuficientes para lidar com ecossistemas digitais complexos. Plataformas com múltiplos lados de mercado, efeitos de rede e controle sobre dados estratégicos geram formas de poder econômico que escapam à lógica clássica do monopólio e cuja remediação posterior tende a ser inefetiva.
Além disso, o estudo evidencia que a ausência de um marco regulatório adequado limita a produtividade e a inovação, alargando o hiato tecnológico entre o Brasil e as economias avançadas. A consequência é um ambiente digital de baixa contestabilidade, no qual startups inovadoras enfrentam barreiras estruturais para crescer e competir.
Diferentemente do PL 2768/2022, conhecido como “DMA brasileiro” por sua semelhança com o Digital Markets Act da União Europeia, o PL 4675 adota uma arquitetura própria, inspirada em boas práticas internacionais, mas enraizada no contexto institucional brasileiro. O projeto adota um modelo híbrido, que combina instrumentos ex ante e ex post dentro do marco já consolidado da Lei 12.529/2011.
Essa opção reforça a maturidade do desenho institucional: a regulação digital passa a integrar o corpo do direito concorrencial brasileiro. De fato, a proposta não cria uma nova autoridade reguladora, pois fortalece o próprio Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), por meio da criação de uma Superintendência de Mercados Digitais (SMD). Essa unidade especializada atuará sob a mesma lógica de equilíbrio e freios institucionais que caracteriza o modelo administrativo brasileiro: a SMD realizará investigações e proporá certas designações e obrigações, que serão submetidas ao crivo colegiado do Tribunal do Cade.
Diagnóstico prospectivo: regulação flexível para o futuro, não para o passado
O PL 4675 reflete uma concepção moderna de regulação econômica. Seu propósito não é punir o tamanho das empresas, mas corrigir distorções estruturais e comportamentais que reduzem a contestabilidade dos mercados e inibem a inovação.
A designação de “agente econômico de relevância sistêmica” combina critérios qualitativos e quantitativos. De um lado, considera fatores como estrutura de múltiplos lados, controle sobre dados essenciais, efeitos de rede, integração vertical e interdependência entre serviços. De outro, aplica limiares de faturamento (R$ 50 bilhões em nível global ou R$ 5 bilhões no Brasil) que funcionam como “piso” e asseguram foco nas plataformas de maior impacto concorrencial.
Uma vez designada, a empresa pode ser submetida a obrigações específicas, definidas caso a caso, voltadas a promover contestabilidade, competitividade e liberdade de escolha. Essas obrigações podem ser negativas, como a proibição de autopreferência, restrições à interoperabilidade ou uso indevido de dados de terceiros, ou positivas, como exigências de portabilidade de dados e transparência nos critérios de ranqueamento.
Trata-se de um modelo sob medida, que combina previsibilidade e flexibilidade e evita tanto a arbitrariedade quanto o engessamento regulatório. Esse equilíbrio traduz um aprendizado institucional relevante: a regulação de plataformas digitais não pode ser genérica nem automática, uma vez que deve ser adaptável à dinâmica de cada ecossistema e proporcional à natureza do risco identificado. Essa abordagem distingue o projeto de regimes excessivamente prescritivos, como o europeu, e o aproxima de modelos adaptativos inspirados em Alemanha e Reino Unido.
Mais do que responder a problemas do passado, o PL 4675 antecipa desafios estruturais que emergem com as novas fronteiras tecnológicas. Em um contexto de aceleração exponencial da inteligência artificial, inclusive da IA generativa, a proposta fornece ao Brasil um instrumento capaz de garantir que os ganhos de produtividade e inovação não se convertam em novas formas de concentração econômica.
As principais provedoras de infraestrutura de nuvem que sustentam modelos de IA (por exemplo, Amazon, Microsoft e Google) são as mesmas que controlam vastos ecossistemas digitais. Acadêmicos e formuladores de políticas públicas já apontam que o mercado de foundation models tende à concentração em poucos players, impulsionada por vantagens cumulativas em dados, capacidade computacional e parcerias estratégicas.
Em relatório de 2023, a Competition and Markets Authority (CMA), autoridade antitruste britânica, observou que quando produtos ou serviços são desenvolvidos por um número restrito de empresas que alavancam poder em mercados adjacentes (como acesso privilegiado a dados ou fidelização de consumidores em ecossistemas integrados), aumenta significativamente a probabilidade de concentração e fechamento de mercado.
Há o risco, portanto, de que o mesmo padrão de poder que consolidou o domínio das grandes plataformas pode se reproduzir na infraestrutura da IA. Essa constatação reforça a atualidade e oportunidade do PL 4675: um marco regulatório preventivo e flexível é indispensável para assegurar que a próxima onda tecnológica se torne vetor de inovação e produtividade.
Conclusão
O PL 4675 representa um marco na política de concorrência brasileira. Ele demonstra que o país é capaz de formular respostas jurídicas próprias e sofisticadas aos desafios trazidos pelos mercados digitais. A proposta constrói sobre avanços internacionais, mas os adapta à realidade brasileira: uma economia de renda média, com fortes assimetrias regionais, mas também com uma autoridade de defesa da concorrência consolidada e um marco constitucional que combina livre iniciativa com justiça social.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
A aprovação da urgência não significa apressar o debate, mas reconhecer que ele já está avançado: com base empírica sólida, consulta pública ampla e diálogo institucional maduro. Diante do risco concreto de estagnação normativa em um setor que se transforma rapidamente, a inação é o verdadeiro perigo.
Modernizar o direito concorrencial é, hoje, um imperativo para que o Brasil se posicione para capturar ganhos de produtividade e inovação, evitando a armadilha de um mercado digital concentrado e excludente. Que o PL 4675/2025 seja, por tudo isso, votado e aprovado com brevidade e sem que suas soluções e inovações sejam descaracterizadas.