A tributação da interconexão de redes e o futuro das telecomunicações no Brasil

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No final da década de 1990, Bill Clinton, à época presidente dos Estados Unidos, afirmou que a informática e as telecomunicações seriam para o século XXI o que as rodovias foram para o século XX. Quase 30 anos depois, vê-se que Clinton estava mais do que certo. Ao longo das últimas décadas, as redes de telecomunicação se expandiram em um ritmo tão acelerado e de forma tão efetiva que conseguiram conectar lugares e pessoas onde sequer as estradas, construídas ao longo de milênios, conseguiram chegar, ou mesmo chegarão, algum dia.

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Isso é possível por meio do que se denomina tecnicamente de “interconexão de redes”. Ela permite que diferentes equipamentos de comunicação sejam conectados de forma integrada, em um dos maiores exemplos de trabalho coordenado e cooperativo no mundo entre entes públicos e privados, que viabiliza a comunicação diária de bilhões de pessoas.

No Brasil, a legislação, seguindo as diretrizes dos acordos internacionais sobre a matéria, determina que as redes de telecomunicações devem ser interconectadas. Para tanto, há previsão de que as operadoras dessas redes devam atuar de forma integrada, mantendo a livre circulação de dados, não podendo negar o tráfego de dados por sua rede, mesmo que o fluxo venha de uma operadora concorrente. O que a legislação contempla é a possibilidade de se pactuar uma remuneração adequada para esse uso compartilhado da infraestrutura: a tarifa de interconexão.

Um exemplo ajuda a esclarecer o conceito. Imagine-se que um cliente da operadora de telefonia móvel X queira se comunicar com um cliente da operadora Y. Ele paga R$ 100 por 100 minutos do serviço de telecomunicação, sendo 80 minutos utilizados na rede da operadora X e 20 na operadora Y. Diante do pagamento de R$ 100, R$ 80 ficam com a operadora X e R$ 20 são repassados para a operadora Y.

Um dos graves problemas tributários que se verifica no Brasil é que a União Federal exige PIS e COFINS sobre o valor total inicialmente recebido pela operadora X e ainda cobra o tributo sobre os valores repassados à operadora Y. No nosso exemplo, é exigido PIS e COFINS tanto sobre os R$ 100 inicialmente recebidos na operadora X quanto sobre os R$ 20 repassados para a operadora Y.

Em resumo, há uma receita de prestação de serviço de R$ 100, mas o Fisco cobra as referidas contribuições sobre uma base inflada de R$ 120. Há um evidente bin is idem tributário nessa hipótese: o Fisco tributa duas vezes a receita de uma única prestação de serviço de comunicação. O correto seria que o PIS e a COFINS incidissem sobre os R$ 100 (R$ 80 da empresa X e R$ 20 da operadora Y), mas nunca sobre uma base fictícia de R$ 120.

Ao contrário do que frequentemente aponta o Fisco, a interconexão não é uma prestação de serviço entre operadoras de telecomunicação, que deva levar a uma dupla tributação do serviço em cada uma dessas etapas. Na verdade, do ponto de vista jurídico, existe apenas uma única e incindível prestação de serviço de comunicação, que se verifica na transmissão dos dados e da mensagem do cliente da empresa X para o cliente da operadora Y. Trata-se de uma só prestação de serviço em que atuam duas operadoras de telecomunicações, em uma verdadeira “coprestação” do serviço.

Para piorar esse cenário, nos termos dos artigos 8º, inciso VIII, da Lei 10.637/2002, e 10, inciso VIII, da Lei 10.833/2003, as receitas decorrentes da prestação dos serviços de comunicação estão sujeitas ao regime cumulativo do PIS e da COFINS. Portanto, não existe direito a crédito sobre os dispêndios essenciais e relevantes realizados para a geração de tais receitas, nem mesmo sobre eventuais valores repassados para se remunerar a atividade absolutamente indispensável da interconexão de redes.

Assim, a tributação de uma mesma receita na operadora X e na operadora Y gera uma incidência tributária em cascata, que onera excessivamente o setor.  No fim, o que se tem é um ônus maior para o usuário, que acaba tendo que pagar mais caro por um serviço duplamente tributado.

Os primeiros julgados sobre a tributação das receitas de interconexão de redes no Poder Judiciário foram favoráveis aos contribuintes. Os Tribunais Regionais Federais das 1ª e 4ª Regiões[1] proferiram decisões entendendo pela não incidência de PIS e COFINS sobre os valores referentes à interconexão de redes.

Apesar disso, ao analisar inicialmente o tema em 2016, a Segunda Turma do STJ entendeu pela validade dessa tributação, baseada essencialmente no argumento de que a base de cálculo do PIS e da COFINS seria a totalidade da receita da empresa de telecomunicação, o que deveria incluir também os valores repassados a outras operadoras. Para justificar a tributação desses valores, o Tribunal entendeu que se aplicaria, por analogia, a esse caso os precedentes – posteriormente superados – de inclusão do ICMS na base de cálculo dessas contribuições.

No entanto, no final de 2021, nos autos do RESP 1.599.065/DF, em processo de relatoria da ministra Regina Helena Costa, a Primeira Turma do STJ acertadamente proferiu decisão entendendo que é ilegal a cobrança de PIS e COFINS sobre os “montantes concernentes ao uso da estrutura de terceiros – interconexão e roaming.

Entre outros argumentos, o STJ fez referência ao Tema nº 69 do STF (ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS) e apontou que a Suprema Corte decidiu pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS por entender que o montante pago a título de ICMS não pode ser qualificado como receita, já que não se incorpora ao patrimônio do contribuinte, tratando-se de simples ingresso de caixa que, ao final, será destinado aos cofres públicos. O STJ estendeu esse raciocínio aos valores de interconexão por entender que eles também não eram destinados em definitivo à operadora de telefonia que os recebia inicialmente do usuário, com a obrigação legal compulsória de repassá-los à operadora de telefonia que também participava na prestação do serviço[2].

Contra esse acórdão, a Fazenda Nacional opôs embargos de divergência alegando dissídio jurisprudencial com o julgado proferido pela Segunda Turma do STJ no AgInt no REsp 1.734.244/RJ (relatoria do ministro Mauro Campbell Marques). O processamento dos referidos embargos foi admitido e a divergência entre a Primeira e a Segunda Turma deverá ser dirimida na Primeira Seção do STJ.

O julgamento em questão é importantíssimo para o setor de telecomunicações. O que se pretende não é nenhum benefício ou desoneração para o setor, mas apenas e tão somente que a tributação ocorra de forma a respeitar as limitações constitucionais e legais para tributação do serviço de telecomunicações.

Aliás, o debate ganha ainda maior relevância quando se constata uma tendência no Brasil e no mundo para a expansão das chamadas “redes neutras de telecomunicações”. Na prática, têm surgido no mercado empresas diferentes das operadoras de telecomunicação, porque especializadas e dedicadas exclusivamente à expansão e à operação da infraestrutura de redes de telecomunicações. Diferentemente das operadoras de telefonia, que prestam o serviço diretamente ao usuário final, as empresas que gerenciam redes neutras têm como clientes as próprias operadoras de telecomunicação. São chamadas “redes neutras” justamente porque não são redes próprias de uma ou de outra operadora, mas fornecem infraestrutura de redes para o mercado em geral.

Essas redes permitem que várias operadoras atuem utilizando apenas uma infraestrutura de uma terceira empresa. Ou seja, diversas empresas podem simplesmente se valer de uma mesma infraestrutura sem precisar de uma rede própria. Esse modelo já é utilizado em diversos lugares do mundo e está se expandindo no Brasil. Esse movimento tem tudo para estimular a expansão e o incremento das redes de telecomunicações, estimulando a concorrência no setor e diminuindo os investimentos necessários para a prestação do serviço. Todos ganham nesse cenário com a ampliação e a modernização das redes de telecomunicações, que viabiliza maior oferta de prestadores do serviço no mercado.

No entanto, se o tema da tributação das receitas de interconexão não for devidamente equacionado, corre-se o risco de se criar um desestímulo a essa tendência. Isso, porque, do ponto de vista fiscal, a tributação dupla da receita de interconexão estimula justamente o cenário oposto da verticalização de operações e a concentração das redes em uma única operadora para se obter uma economia fiscal.

Esse tema deve ser devidamente endereçado para o passado e também para o futuro. Deve, portanto, ser considerado, também, na reforma tributária em discussão no Congresso Nacional, se o que se pretende, efetivamente, é uma neutralidade tributária sobre o consumo.

O avanço e a expansão do setor de telecomunicações são essenciais para o desenvolvimento tecnológico do país e, por consequência, para seu desenvolvimento econômico e social. Compete ao Poder Público, inclusive ao Poder Judiciário, contribuir para esse desenvolvimento, impedindo que se criem entraves ilegais e inconstitucionais que prejudiquem as atividades econômicas e criem ônus indevidos aos usuários dos serviços de telecomunicações. Se as redes de telecomunicações são as estradas do século XXI, a última coisa de que precisamos é de pedágios abusivos que impeçam o livre trânsito da comunicação.

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[1] Apelação em Mandado de Segurança nº 2008.34.00.035410-9, relator: Juiz Federal Convocado Clodomir Sebastião Reis, TRF da 1ª Região, 8ª Turma, julgado em 19.10.2012; e Apelação Cível nº 5000984-38.2010.404.7003, relator para Acórdão: desembargador federal Joel Ilan Paciornik, TRF da 4ª Região, 1ª Turma, julgado em 11.12.2013

[2] A analogia com o Tema 69 ficou clara na passagem em que o v. acórdão afirma que “Axiologia da ratio decidendi que afasta a pretensão de caracterização, como faturamento, de cifras relativas à interconexão e ao roaming, as quais obedecem a sistemática própria do serviço público prestado pelas empresas do setor.”