Em 14 de outubro de 2025, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando uma súmula controversa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o tribunal administrativo que julga, em segunda instância, disputas entre contribuintes e Receita Federal (ADPF 1.276). A CNI argumenta que o Carf não tem competência para afastar a aplicação de uma lei federal e, ao editar a súmula, violou a legalidade, a separação de poderes e a isonomia, além de ter extrapolado seu poder regulamentar.
Está em debate uma proteção criada há sete anos para evitar que o governo mude as regras no meio do jogo. A súmula afasta a aplicação do artigo 24 da LINDB ao processo administrativo fiscal, dispositivo que impede que novas orientações da administração pública tenham efeitos retroativos sobre fatos já consolidados.
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Mas o que motivou essa súmula? Pesquisa realizada na FGV Direito SP, orientada pelo professor Carlos Ari Sundfeld, mergulhou nos bastidores dessa súmula e constatou o seguinte: ela foi editada sem que houvesse acordo sobre seus fundamentos jurídicos.
O artigo 24 no Carf
O artigo 24 da LINDB foi introduzido pela Lei 13.655/2018, conhecida como Lei de Segurança Jurídica para a Inovação Pública. O objetivo da reforma era claro: reduzir a insegurança jurídica no direito público brasileiro. O dispositivo estabelece que autoridades que revisam atos administrativos devem se pautar pela orientação vigente à época em que os fatos ocorreram, não por mudanças posteriores de entendimento.
No Carf, o dispositivo passou a ser utilizado pela defesa dos contribuintes. O raciocínio era claro: se uma empresa praticou, em 2020, um fato gerador, seguindo orientação geral da receita federal ou mesmo do CARF, não poderia ser autuada anos depois, em relação a este mesmo fato, com base em orientação geral que surgiu somente em 2023.
Em outros termos, haveria cobrança retroativa de tributos, pautada em entendimento que não existia à época dos fatos geradores. Essa situação romperia com a segurança jurídica, uma vez que prejudica o contribuinte que se pautou em orientação geral vigente da administração pública.
Por isso, as autuações fiscais, pautadas em nova orientação geral, deveriam ser canceladas, nos termos do art. 24 da LINDB. Esse dispositivo vincularia tanto o fisco quanto os órgãos judicantes do processo administrativo fiscal, incluindo o CARF. O fisco, no exercício de revisão de lançamento e os órgãos judicantes, ao julgar sua validade.
A súmula encerrou o debate?
Após anos de controvérsia, o debate sobre a aplicação do artigo foi encerrado com a edição da súmula 169 do Carf, que tem o seguinte enunciado: “O art. 24 do decreto-lei nº 4.657, de 1942 (LINDB), incluído pela lei nº 13.655, de 2018, não se aplica ao processo administrativo fiscal.”
Apesar de ter encerrado a discussão no âmbito do Carf, o enunciado da súmula não indicou o fundamento jurídico para a não aplicação do artigo 24 da LINDB ao processo administrativo fiscal.
A investigação: 18 acórdãos sob análise
Nesse contexto, a monografia buscou identificar as correntes argumentativas que levaram à edição da súmula, a partir da leitura de seus precedentes, assim como dos demais julgados da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, emitidos antes da edição da súmula em 2021. Ao todo, foram 18 acórdãos analisados.
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O trabalho extraiu as razões de decidir de cada acórdão, sistematizou os argumentos e verificou sua recorrência, de modo que foi possível constatar a existência ou não de uma uniformidade argumentativa entre os precedentes. Foram identificados seis tipos distintos de fundamentação, resumidos a seguir.
- Competência da Lei Complementar: Normas gerais de direito tributário devem ser instituídas por lei complementar, conforme o art. 146, inc. III, da Constituição Federal. A LINDB, enquanto lei ordinária, não tem competência para tratar de assuntos gerais de matéria tributária, por isso, o referido dispositivo não é aplicável ao processo administrativo fiscal.
- Especialidade do CTN: Há normas específicas no direito tributário que preveem a irretroatividade de nova interpretação (art. 100 e 146 do CTN), em contraposição ao art. 24 da LINDB. Havendo superposição de normas, deve prevalecer a mais específica, que, nesse caso, seria o CTN.
- Engessamento do Contencioso Administrativo: Risco de limitação da evolução dos entendimentos dos órgãos judicantes administrativos em matéria fiscal. Trata-se de um argumento consequencialista de que as turmas estariam vinculadas à orientação geral vigente à época do fato gerador do caso em apreço, o que dificultaria uma mudança no entendimento sobre a matéria.
- Função Judicante do CARF: A função judicante do CARF se distingue da atividade revisional tratada pelo artigo 24 da LINDB. Por exercer função judicante, não revisional, o art. 24 da LINDB não se aplica ao processo administrativo fiscal.
- Finalidade da LINDB: A reforma da LINDB foi destinada aos órgãos de controle interno da administração pública, sem relação de finalidade direta com o processo administrativo fiscal. Por isso, o referido artigo não é aplicável.
- Natureza do Lançamento Tributário: O lançamento tributário – atividade exercida pelo fisco, ou pelo contribuinte, no caso do autolançamento (ou lançamento por homologação) – não revisa ato administrativo pretérito e não constitui plenamente situação alguma, ao passo que o art. 24 da LINDB exige uma revisão de ato administrativo e situação plenamente constituída para ser aplicado. Não estando preenchido esse requisito, não é possível aplicar os comandos do dispositivo.
O resultado: prevalência sem uniformidade
Dos 18 acórdãos analisados, a pesquisa identificou que 17 rejeitaram a aplicação do artigo 24 da LINDB ao processo administrativo fiscal. Um dos acórdãos, contrariamente ao que se esperava, acolheu a aplicação pretendida pelos contribuintes. Em outro caso, um acórdão, apesar de concluir pela inaplicabilidade do artigo 24, tem como razão de decidir o acórdão 2402-007.295, que, por sua vez, é favorável a tal incidência.
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O argumento (4) da função judicante do Carf foi o mais recorrente, sendo a razão de decidir de 14 acórdãos. A recorrência dos demais variou entre 3 e 6 acórdãos.
O trabalho concluiu que o argumento da função judicante, por sua maior recorrência nas ratios, foi, possivelmente, o fundamento jurídico que ensejou a edição da súmula 169 do CARF. No entanto, indicou que se tratava de uma preponderância argumentativa, não de uma tese aplicada unânime e uniformemente ao longo dos acórdãos avaliados.
Quanto aos demais argumentos, entende-se que não houve consolidação no Conselho, em razão da baixa recorrência nos acórdãos e da heterogeneidade das teses discutidas (por vezes, contraditórias entre si).
Verificou-se que o Carf não enfrentou todos os argumentos acerca do tema, decidindo pela não aplicação do artigo com base na função judicante do CARF, mas não se expressando uniforme e reiteradamente quanto aos outros 5 argumentos identificados.
Por que isso importa?
A pesquisa demonstra que, quando a súmula 169 foi editada, o debate não estava pacificado. Os precedentes analisados não são unânimes quanto à fundamentação para a não aplicação do art. 24 ao processo administrativo fiscal.
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Súmulas existem para consolidar entendimentos já maduros e uniformes. Segundo os requisitos do próprio Carf e do Código de Processo Civil, é necessário que haja similitude entre as razões de decidir dos acórdãos para fins de uniformização de jurisprudência. Ao editar a súmula 169 sem uniformidade, o Carf ocultou dissimilaridades fundamentais entre os precedentes, impedindo que o debate sobre as diferentes teses evoluísse naturalmente. Em vez de consolidar um entendimento maduro, a súmula interrompeu prematuramente uma discussão ainda em desenvolvimento.
Agora, com a ADPF 1.276 no STF, cabe à Corte Suprema decidir se o Carf tinha mesmo o poder de afastar, por meio de uma súmula, a aplicação de uma lei federal ao processo administrativo fiscal.