O Brasil vive um momento de virada na transformação digital da saúde. Nos últimos anos, importantes marcos normativos e institucionais foram estabelecidos, como a Estratégia de Saúde Digital 2020–2028, a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI) no Ministério da Saúde e, mais recentemente, o Decreto nº 12.560/2025, que consolidou a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) como a plataforma oficial de interoperabilidade do SUS.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Esse decreto atribuiu ao Ministério da Saúde a função de coordenar os padrões de interoperabilidade em nível nacional, aplicáveis tanto ao sistema público quanto privado, sempre pactuados na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), que atua como fórum de negociação federativa. Esses instrumentos dão ao país uma base técnica e institucional sólida, embora ainda não resolvam a coordenação integrada de governança.
Hoje, diferentes órgãos e esferas regulam aspectos da saúde digital. O Ministério da Saúde, por meio da SEIDIGI, que integra o DataSus, lidera a implementação da RNDS e do Programa SUS Digital; a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem foco na regulação do setor privado; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) fiscaliza softwares e dispositivos médicos; os conselhos profissionais estabelecem normas de telemedicina e prontuário eletrônico; a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) supervisiona a aplicação da LGPD; e estados e municípios possuem independência em relação às suas soluções digitais. Cada ator tem papel legítimo.
Essa arquitetura regulatória, apesar de orientar os diferentes elos da cadeia, ainda carece de uma articulação nacional capaz de integrar todo o ecossistema de saúde, o que acaba por gerar sobreposições, lacunas e riscos de conflitos normativos. Ainda observamos um cenário fragmentado, em que a digitalização e a interoperabilidade evoluem em ritmo lento e desigual, deixando de capturar benefício tanto para os diferentes atores da saúde quanto, e principalmente, para os pacientes que navegam pelo sistema.
Portanto, esse cenário tem efeitos concretos sobre pacientes, profissionais e empresas. O cidadão encontra dificuldade de acesso ao seu histórico clínico e sofre com jornadas de cuidado desarticuladas. Hospitais e médicos convivem com exigências regulatórias muitas vezes contraditórias. Empresas e startups enfrentam um ambiente de incerteza que desestimula investimentos em soluções digitais. Pagadores têm dificuldade de financiar e incentivar protocolos de saúde alinhados às melhores práticas e medicina baseada em evidência. E, finalmente, sem alinhamento nacional, estados e municípios seguem trajetórias distintas, o que amplia desigualdades regionais e compromete a eficiência do sistema como um todo.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
A experiência internacional mostra que não basta investir em tecnologia: é preciso criar instâncias de governança capazes de articular atores e alinhar padrões. Nos Estados Unidos, o Office of the National Coordinator for Health Information Technology (ONC) lidera os esforços federais em tecnologia da informação em saúde e tem a atribuição de coordenar, em âmbito nacional, a implantação e o uso das tecnologias mais avançadas de informação em saúde, bem como a troca eletrônica de informações de saúde. Na União Europeia, o European Health Data Space, adotado em 2025 como regulamento comunitário, busca harmonizar regras de dados em escala continental. Dos dois lados do Atlântico, os modelos reforçam a lição de que a transformação digital só se sustenta quando há coordenação regulatória central, combinada com a participação ampla dos diferentes setores.
No Brasil, além dos importantes avanços mencionados, ganha relevância o debate legislativo em curso no Congresso Nacional, onde tramita um substitutivo ao PL 5875/2013 que busca atualizar o marco normativo da saúde digital e da RNDS. Trata-se de uma proposta que, se aprovada, representará uma evolução significativa ao oferecer um novo patamar de governança, com maior clareza de atribuições e mecanismos de coordenação.
Esse movimento legislativo sinaliza uma direção clara. O próximo passo será transformar essa base em uma coordenação nacional efetiva, capaz de articular órgãos federais, agências reguladoras, conselhos profissionais e entes subnacionais, ao mesmo tempo em que promove a participação do setor privado e da sociedade civil. A partir daí, será possível enfrentar temas emergentes, como a regulação da inteligência artificial em saúde e o uso secundário de dados, de forma coordenada, sempre com foco na proteção de direitos e na experiência do cidadão.
Inscreva-se no canal do JOTA no Telegram e acompanhe as principais notícias, artigos e análises!
O setor privado, as instituições públicas e a sociedade civil terão papel decisivo nesse processo. Empresas de tecnologia podem contribuir com soluções interoperáveis e inovação responsável ao prover tecnologias que já estão maduras; prestadores e operadoras devem adotar padrões comuns e integrar informações de forma transparente; instituições públicas precisam assegurar coerência normativa e suporte técnico; e a sociedade deve atuar como guardiã da transparência e do direito de acesso à informação. Esse esforço coletivo permitirá converter os avanços institucionais e legislativos em uma transformação digital sustentável e cidadã.
O Brasil está diante de uma oportunidade histórica. O fortalecimento da SEIDIGI e a possível aprovação do substitutivo em debate no Congresso apontam na mesma direção: a consolidação de uma governança nacional da saúde digital. Se concretizada, essa articulação permitirá transformar fragmentação em integração, baixa previsibilidade regulatória em estabilidade e tecnologia em cuidado contínuo, equitativo e de qualidade para toda a população.