A titularidade do conteúdo criado com IA e a proteção da criatividade humana

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As plataformas de inteligência artificial se consolidaram como ferramentas essenciais para a criação de conteúdos digitais por meio de prompts e instruções elaboradas pelo usuário. Essa dinâmica torna o ser humano não apenas um consumidor, mas também o agente criativo que direciona e concretiza a obra.

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No contexto brasileiro, o uso dessas plataformas configura, em regra, uma relação de consumo, mesmo quando o usuário não realiza pagamento direto pelo serviço. Isso porque, conforme entendimento consolidado no Direito do Consumidor, o usuário pode ser considerado o próprio produto — na medida em que fornece dados e atenção em troca de acesso à tecnologia e de anúncios personalizados.

Nesse cenário, surge uma questão central: qual é o benefício real dessa relação de consumo se o usuário, mesmo sendo o autor intelectual da ideia, não puder se utilizar plenamente do resultado criado a partir de sua própria criatividade, já que é considerado o próprio produto da relação de consumo e ainda fornece sua criatividade?

Muitas plataformas anunciam que “você não precisa saber programar” ou que “nós fazemos o trabalho técnico para você”. Assim, vendem a promessa de democratização criativa, oferecendo a qualquer pessoa a possibilidade de transformar ideias em produtos concretos, como sites e aplicativos, sem precisar dominar linguagens de programação.

Entretanto, há uma contradição quando, ao final desse processo, os termos de uso estabelecem que os direitos autorais sobre o conteúdo gerado pertencem à plataforma — ou, ao menos, negam a responsabilidade sobre os resultados. Essa prática cria uma assimetria informacional e contratual: o usuário contribui com a ideia, direciona a criação, fornece os dados e, muitas vezes, paga pelo serviço, mas não detém o controle jurídico sobre o produto final.

Do ponto de vista jurídico, isso viola a boa-fé objetiva e a confiança legítima (art. 422 do Código Civil), pois a plataforma age de modo contraditório: promete empoderamento criativo e, ao mesmo tempo, retira do usuário a titularidade da obra. Tal conduta pode ser compreendida como ato ilícito contratual (art. 186 do Código Civil), uma vez que frustra a expectativa legítima gerada pela própria oferta do serviço.

A questão da titularidade também se relaciona à responsabilidade. Quando a plataforma se exime de responder por eventuais danos causados pelo conteúdo gerado, mas, ao mesmo tempo, afirma deter todos os direitos sobre esse conteúdo, cria-se um desequilíbrio jurídico. Se apenas a empresa tem direitos, apenas ela deveria assumir os deveres e responsabilidades correspondentes. Logo, reconhecer parte dos direitos autorais ao usuário também é uma forma de estabelecer responsabilidades proporcionais — quem tem direitos, também tem deveres.

Como destaca Louis Tompros, professor da Faculdade de Direito de Harvard, “a lei não pode ficar à frente. Ela sempre ficará um pouco para trás.” Essa defasagem entre inovação e regulamentação torna especialmente urgente a discussão sobre a autoria de obras criadas com apoio de ferramentas de inteligência artificial.

Plataformas que prometem ao usuário a capacidade de criar sites, imagens e outros conteúdos de forma autônoma despertam a legítima expectativa de que tais criações — originadas a partir de suas ideias e instruções — lhes pertençam.

Negar essa titularidade sob o argumento de que a execução técnica foi feita por uma IA seria uma distorção do próprio princípio da propriedade intelectual, que visa proteger e incentivar a criatividade humana, não apenas o meio tecnológico pelo qual ela se manifesta.

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Os Termos de Serviço da Emergent (atualizados em 20 de maio de 2025) estabelecem que a plataforma mantém a titularidade sobre sua marca, arquitetura, sistemas internos e demais elementos proprietários, mas reconhece expressamente que os conteúdos gerados pelos usuários — como códigos, sites e aplicações — pertencem a quem os cria. O usuário pode utilizá-los, modificá-los, distribuí-los e explorá-los economicamente sem restrições, sendo a plataforma compreendida apenas como fornecedora de meios técnicos para a realização do trabalho criativo, e não como autora ou proprietária do resultado.

De forma semelhante, os termos da OpenAI também reconhecem que o usuário mantém a propriedade da entrada (“input”) e da saída (“output”), que a empresa cede quaisquer direitos que eventualmente possua sobre a saída, reserva para si uma licença não exclusiva e mundial de uso para fins de aprimoramento dos serviços, e limita sua responsabilidade enquanto alerta para o risco de resultados semelhantes entre usuários diferentes. Embora essas cláusulas façam sentido do ponto de vista técnico e jurídico, ainda podem gerar ambiguidades quanto a quem detém o controle completo sobre o conteúdo, especialmente em relação ao uso comercial, exclusividade e exploração econômica.

Em síntese, negar ao usuário os direitos sobre os resultados criados a partir de sua própria ideia é uma forma de apropriação indevida da criatividade humana. Além de ferir a boa-fé e a transparência, isso contraria o propósito declarado dessas tecnologias: empoderar o indivíduo e democratizar o acesso à criação digital.

A atribuição de direitos autorais ao usuário não apenas faz justiça ao seu papel criativo, mas também estabelece um regime equilibrado de deveres e responsabilidades entre quem cria e quem fornece a ferramenta.

A inteligência artificial é um meio técnico, mas o fim criativo é humano.
A propriedade intelectual das criações geradas em plataformas de IA deve pertencer ao usuário, que concebe, orienta e paga pelo processo.
Além disso, toda criação realizada por um usuário deve estar disponível para sua livre exploração econômica, sem que a plataforma imponha limitações sobre o que pode ser vendido ou divulgado.

Somente assim o direito acompanhará a tecnologia, protegendo o essencial: a criatividade humana.