Está em xeque o conceito de cláusulas regulamentares em contratos de concessão?

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Em concessões de serviço público, é difundida a noção de cláusulas regulamentares, entendidas como normas que disciplinam o modo de prestação de tal serviço público e que, justamente por tratarem de seu âmago, incidem sobre os contratos em curso, ainda que sem anuência da concessionária. Segundo essa noção, a contratada não tem escolha: as novas condições de execução do serviço lhe são impostas e, em contrapartida, há seu direito ao reequilíbrio contratual.

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Entretanto, é o caso de pensarmos se a ideia de cláusulas regulamentares, tal como classicamente formulada, ainda faz sentido em todo e qualquer caso. Isso porque essa teoria não se alinha à tendência normativa que vem impedindo que sejam incorporadas às concessões em curso novas condições de prestação do serviço público sem que a concessionária concorde com que sejam introduzidas aos contratos vigentes.

Nesse sentido, tem sido editadas norma que conferem ao contratado o direito de não incorporar à execução contratual novos aspectos da prestação do serviço público (ou seja, aspectos que se enquadrariam no conceito de cláusulas regulamentares) surgidos após a celebração do contrato de concessão. Nesses casos, novas normas sobre a regulamentação do serviço concedido não podem ser simplesmente impostas à concessionária. Se a contratada optar por incorporar aos contratos de concessão essas condições relativas à prestação do serviço, será promovido um termo aditivo acompanhado de reequilíbrio. Já se escolher que tais novas regras não sejam incorporadas, o contrato será preservado tal como vigente até então.

No setor de saneamento básico, há bons exemplos disso. Vejamos, primeiramente, a questão da incorporação aos contratos em curso de metas de universalização, conforme previsto no art. 11-B, §2º, III, da Lei nº 11.445/2007[1]. Nos termos da lei, essas metas somente serão incluídas nos contratos de concessão já celebrados mediante comum acordo com a contratada. Se a concessionária não anuir, o titular do serviço público deverá procurar outros meios para atingir tais metas no prazo legal.

Outro exemplo ilustrativo são as regras da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA sobre as condições gerais de prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário e de seus indicadores de desempenho operacionais, que constam do art. 2º, §§1º e 2º, das Normas de Referência nº 11/2024 e 9/2024, respectivamente:

  • 1º Esta Norma de Referência não se aplica aos contratos de concessão vigentes, firmados em decorrência de procedimento licitatório ou de desestatização ou cujo edital ou consulta pública tenham sido publicados antes de sua vigência.
  • 2º Os contratos de que trata o § 1º poderão incluir dispositivos desta Norma mediante acordo entre titular e prestador de serviços, ouvida a entidade reguladora infranacional e assegurado o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Tais regras das Normas de Referências – que disciplinam questões claramente regulamentares dos serviços públicos – somente incidirão nos contratos de concessão em curso se houver acordo entre as partes. Logo, se a concessionária não concordar, nada feito.

Essa prática normativa mostra uma tendência de mitigação da ideia teórica, classicamente difundida, de que novas regras (leis ou atos normativos do titular do serviço e/ou da agência) sobre o modo de prestação do serviço público são impostas à concessão, independentemente da vontade da concessionária, sendo-lhe reservado apenas o direito ao reequilíbrio.

No lugar de modificar-se os contratos de forma alheia à concordância da concessionária, há um movimento normativo buscando preservar os contratos caso a concessionária opte por não incorporar novas regras sobre a prestação do serviço. Desse modo, ressalta-se o caráter contratual, marcado pela bilateralidade, mesmo daquelas disposições que tratam do funcionamento, da organização e do modo de prestação dos serviços públicos.

Diante disso, faço um convite para pensarmos em que medida a ideia teórica de cláusulas regulamentares, como um demarcador daquilo que pode ser imposto à concessão mesmo sem concordância da concessionária, permanece sendo aderente à realidade normativa e contratual que se delineia na atualidade. Ou seja, pensarmos se esse conceito está, ou não, em xeque.

Pode ser que, após essa reflexão, concluamos que a ideia de cláusulas regulamentares ainda resiste, sendo normas tais como aquelas citadas meras exceções pontuais aplicadas a contatos e matérias específicas. Ou, em sentido contrário, pode ser que constatemos que, a depender da proliferação de regras no mesmo sentido acima abordado, a ideia de cláusulas regulamentares está cada vez menos compatível com o direito posto.

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Em todo o caso, o importante é tomarmos ciência da existência de regras que submetem a mudança de aspectos regulamentares da concessão à concordância da concessionária e, então, passarmos a refletir sobre elas, deixando de reproduzir ideias teóricas como verdades absolutas dissociadas da realidade.

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[1] Art. 11-B. Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento.

[…]

  • 2º Contratos firmados por meio de procedimentos licitatórios que possuam metas diversas daquelas previstas no caput deste artigo, inclusive contratos que tratem, individualmente, de água ou de esgoto, permanecerão inalterados nos moldes licitados, e o titular do serviço deverá buscar alternativas para atingir as metas definidas no caput deste artigo, incluídas as seguintes:

[…]

III – aditamento de contratos já licitados, incluindo eventual reequilíbrio econômico-financeiro, desde que em comum acordo com a contratada.