Do mercado à sociedade: existe um uso coletivo de dados pessoais?

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A consolidação da estrutura regulatória de proteção de dados pessoais no Brasil na última década é um avanço importantíssimo, que reforça a posição do país como uma democracia capaz de entender e respeitar direitos e liberdades fundamentais em suas mais diferentes dimensões.

Exatamente por estarmos nesse nível de maturidade, parece o momento certo de começarmos a discutir limites no direito à proteção de dados e, ao mesmo tempo, seu papel na consolidação dos direitos sociais.

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É verdade que a utilização de informações pessoais em políticas públicas de saúde, mobilidade urbana e serviços públicos não é nova, mas sua ponderação e balanceamento ainda é pouco discutida. E, ao colocarmos isso lado a lado com a autodeterminação informacionais, percebemos que escolhas individuais sobre privacidade podem repercutir no bem-estar coletivo.

Dados Pessoais podem ser direitos para juristas — mas economistas como Alessandro Acquisti, Liad Wagman e Curtis Taylor dirão que dados podem se aproximar das características de bens públicos — não rivais (utilizáveis simultaneamente por múltiplas pessoas ou empresas) e não excludentes (sem barreiras de acesso). São lentes diferentes e complementares. Isso significa que a mesma informação pode servir a múltiplos propósitos ao mesmo tempo: um dado sobre deslocamento urbano pode subsidiar tanto uma pesquisa acadêmica quanto o planejamento de transporte coletivo ou a análise de risco de seguradoras.

Exemplos não faltam. Talvez um dos principais seja o próprio Gov.br, plataforma digital do governo brasileiro. Em 2025, ela ultrapassou a marca de 130 milhões de usuários e concentra mais de 12 mil serviços, de emissão de documentos a acompanhamento de benefícios sociais. Cada novo usuário e cada serviço incluído aumentam o valor para todos, em um típico efeito de rede. A lógica é a mesma de grandes marketplaces ou redes sociais: quanto maior a escala, maior a utilidade do sistema — e, aqui, com um benefício público que gera menos burocracia, mais inclusão e acesso a direitos.

Outro exemplo relevante vem da mobilidade urbana. São Paulo estruturou o Observatório da Mobilidade, que integra dados de bilhetagem eletrônica, trânsito e transporte público. O uso combinado dessas informações permite não só reduzir congestionamentos, como também melhorar a segurança viária e o planejamento urbano. A pandemia de Covid-19 reforçou esse potencial: relatórios de mobilidade baseados em dados de histórico de localização dos usuários, divulgados de forma agregada e anonimizada, ajudaram governos a avaliar adesão às medidas de isolamento e a direcionar recursos para regiões mais afetadas. Nesses casos, a coleta e o tratamento de dados foram fundamentais para decisões de política pública, com impacto imediato no bem-estar da população.

O que aconteceria se direitos de proteção de dados fossem utilizados para impedir essas iniciativas? Muitas vezes, pensamos que o exercício de um direito individual — como oposição ao uso dos dados — é praticamente intocável e que, se exercido em face de grandes bases de dados, seu impacto seria irrelevante frente ao conjunto. Contudo, se todos pensarem assim, o resultado coletivo é um déficit no fornecimento de dados, comprometendo políticas públicas que dependem dessas informações.

É o mesmo dilema de bens coletivos como segurança ou saúde pública: todos querem usufruir, mas poucos querem contribuir. Muitas vezes, mecanismos de conscientização, incentivos reputacionais e estruturas de governança que garantam uso justo e transparente são necessários, assim como interpretações que possam sopesar esses benefícios sociais frente a direitos individuais — foi com essa lógica que proibimos, por exemplo, fumar em determinados espaços.

David Deming, professor de Economia Política e reitor acadêmico da Harvard Kennedy School, explica que as pessoas tendem a agir de forma egoísta, preferindo não compartilhar informações enquanto esperam que outros o façam — um fenômeno de free riding. Em vez de propor a monetização individual dos dados, Deming defende que a solução está em fortalecer a confiança pública e resolver os desafios tecnológicos de privacidade, além de criar normas sociais que incentivem o compartilhamento responsável e mostrem claramente os benefícios coletivos do uso de dados.

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O ponto central, portanto, é que privacidade e interesse público não são antagônicos. Eles se complementam quando tratados com seriedade metodológica e institucional. A boa regulação deve olhar além da ótica do indivíduo e incorporar o papel social dos dados, sem abrir mão de salvaguardas robustas. Essa postura não significa enfraquecer direitos, mas fortalecê-los, pois permite desenhar soluções equilibradas que maximizem benefícios coletivos sem deixar de proteger indivíduos e grupos vulneráveis.

Dados pessoais são, ao mesmo tempo, ativos privados, bens de valor coletivo e direitos individuais. Reconhecer isso é fundamental para que possamos construir um ecossistema regulatório que não apenas proteja, mas também potencialize a capacidade dos dados de gerar valor social.

O debate sobre privacidade precisa, portanto, ser menos binário e mais baseado em evidências. Só assim será possível transformar dados em infraestrutura de cidadania para o Brasil.


ACQUISTI, Alessandro; TAYLOR, Curtis; WAGMAN, Liad. The Economics of Privacy. Journal of Economic Literature, v. 54, n. 2, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1257/jel.54.2.442.

SÃO PAULO (Município). Mobilidade Urbana — Notícias. Prefeitura de São Paulo, 2023.

Disponível em: https://prefeitura.sp.gov.br/web/mobilidade/w/noticias/306790.

GOOGLE. COVID-19 Community Mobility Reports. 2020. Disponível em: https://www.google.com/covid19/mobility/.

INFORMATION TECHNOLOGY AND INNOVATION FOUNDATION (ITIF). The Economics of Data — With David Deming. 21 jun. 2022. Disponível em: https://itif.org/publications/2022/06/21/the-economics-of-data-with-david-deming/.