Imagine um morador do Recife pagando a fatura do cartão de crédito. O serviço foi usado ali, mas o ISS não ficava no Recife. Pela regra antiga, o imposto era recolhido no município onde estava a sede da administradora, quase sempre Barueri, em São Paulo. O mesmo acontecia com planos de saúde: ainda que milhares de consultas fossem realizadas em diferentes cidades, a receita do ISS se concentrava no município-sede da operadora.
Esses casos mostram como a tributação no local do prestador criava distorções. Cidades com milhões de consumidores perdiam arrecadação, enquanto municípios que abrigavam apenas sedes administrativas arrecadavam valores desproporcionais à sua economia real. O sistema premiava o endereço formal da empresa, não o local onde o serviço era efetivamente consumido. Criava-se, assim, um ambiente de “guerra fiscal”, muito parecido com o que ocorria no ICMS.
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A Emenda Constitucional 132, de 2023, surgiu para corrigir esse desequilíbrio. Ela criou o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que unifica o ICMS e o ISS, e determinou que a arrecadação siga o princípio do destino. Na prática, significa que o imposto fica onde o consumo acontece. Se o cartão é usado no Recife, a receita pertence ao Recife. Se o contrato de leasing é assinado em Curitiba, é Curitiba quem arrecada. Se o plano de saúde atende pacientes em Salvador, o imposto permanece em Salvador.
Essa lógica parece simples, mas representa uma revolução. Ela põe fim à concentração artificial de receitas, aproxima a tributação da capacidade contributiva e pacifica o pacto federativo. Ao reduzir disputas judiciais e tornar a repartição mais justa, o princípio do destino se consolida como a nova bússola do sistema: a tributação acompanha o local onde a vida econômica de fato acontece.
Contudo, quando pensamos em grandes empresas com dezenas ou centenas de estabelecimentos espalhados pelo país, surge um problema prático: como registrar cada aquisição em cada filial sem criar uma burocracia insustentável? Para lidar com essa dificuldade, a lei instituiu um mecanismo de simplificação, conhecido como regime das aquisições centralizadas, que permite concentrar a escrituração em um único estabelecimento, sem comprometer a repartição da receita tributária.
O regime das aquisições centralizadas tem fundamento direto na Constituição. O art. 156-A, §5º, IV, da EC nº 132, de 2023, autorizou a lei complementar a definir critérios diferenciados de localização da operação “em razão das características do bem, do serviço ou dos contratantes”. Foi com base nesse permissivo que a Lei Complementar 214, de 2025, no art. 11, §4º, instituiu a possibilidade de centralização das aquisições.
A regra funciona assim: quando uma empresa com vários estabelecimentos realiza uma aquisição creditável, pode registrar a nota fiscal diretamente em sua matriz, considerada o domicílio principal do adquirente. Essa faculdade, contudo, depende do cumprimento de alguns requisitos: o contribuinte deve estar no regime regular do IBS e da CBS, possuir mais de um estabelecimento e a aquisição não pode envolver bens ou serviços com vedação ao crédito.
Além disso, a centralização só é admitida em duas hipóteses específicas previstas na lei: (i) serviços de telefonia fixa e demais serviços de comunicação prestados por cabos, fios, fibras e meios semelhantes (art. 11, IX); e (ii) aquisições de bens móveis imateriais, inclusive direitos, e de serviços não enquadrados em outros incisos (art. 11, X).
Na prática, a centralização busca simplificar a vida de grandes contribuintes. Imagine uma rede de supermercados com cem lojas no país, cada uma com um contrato de telefonia fixa. Sem essa regra, seriam cem notas fiscais e cem escrituras contábeis. Com a centralização, todas as operações podem ser registradas na matriz. Isso vale igualmente para bens intangíveis, como softwares ou licenças de uso, em que seria quase impossível alocar com precisão o consumo em cada filial.
Ao final surge a dúvida: a centralização não alteraria a repartição do imposto entre estados e municípios, já que concentra o registro na matriz? A resposta é negativa. O mecanismo só se aplica a operações com direito a crédito, em que não há arrecadação líquida nessa etapa. O fornecedor emite a nota fiscal com o débito do imposto e recolhe o valor, mas a matriz, ao adquiri-la, se credita integralmente do mesmo montante. O efeito é imediato: débito e crédito se anulam, sem gerar receita líquida para nenhum ente federado.
A tributação só aparece quando o bem ou serviço é destinado ao consumidor final, operação que não dá direito a crédito e envolve a agregação de valor. É nesse momento que surge a receita efetiva e que o princípio do destino se concretiza, garantindo que o imposto seja recolhido no local onde ocorreu o consumo.
Por isso, a centralização tem caráter exclusivamente escritural e fiscalizatório. Ela não desloca receitas, apenas concentra a escrituração em um único ponto. O que se desloca, na prática, é a primazia da fiscalização: como a matriz registra todas as aquisições, cabe ao ente federado de sua localização acompanhar, auditar e, se necessário, promover a cobrança.
Se é assim, pode surgir a pergunta: por que não aplicar essa lógica a todas as aquisições? A resposta é que a centralização só faz sentido quando não há risco de deslocar a receita tributária efetiva do local de consumo. Nos casos em que existe direito a crédito, como nas operações entre empresas (B2B), o débito do fornecedor e o crédito do adquirente se neutralizam, de modo que a receita apenas se manifesta no consumo final. Já nas operações com consumidor (B2C), em que não há crédito a ser apropriado, a centralização poderia transferir indevidamente a arrecadação para a matriz, rompendo com o princípio do destino.
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Além disso, uma ampliação indiscriminada desse modelo poderia estimular uma tendência de “modelagem centralizada”, abrindo brechas para exceções ao princípio do destino e recriando, por outros caminhos, o ambiente de guerra fiscal que a reforma buscou encerrar.
Por fim, é preciso reconhecer que a disciplina da centralização na Lei Complementar 214, de 2025, não é isenta de críticas. O texto legal, ao alterar o “local da operação” para a matriz, transmite a impressão de que há uma mudança no próprio critério do fato gerador. Isso gera confusão, pois, em verdade, não há deslocamento da materialidade do imposto, mas apenas um ajuste de natureza escritural.
O objetivo deveria ter sido declarado de forma expressa: simplificar a escrituração e facilitar a fiscalização. Ao optar por redigir a regra como se fosse uma modificação do local da operação, a lei se distancia da melhor doutrina tributária e cria margem para interpretações equivocadas sobre os efeitos arrecadatórios da centralização.