Estamos preparados para a leitura expandida?

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O Google lançou há algumas semanas a possibilidade do NotebookLM também fazer resumos de vídeos em português, somando-se aos resumos em áudios. Para quem não conhece, esta IA do Google se assemelha a um ChatGPT, mas o seu foco está nos estudos. Em especial, a ferramenta ganhou destaque por sua capacidade de lidar com muitos arquivos e pelo seu resumo em áudio.

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Neste caso, ela pega um ou mais arquivos (que podem ser PDFs, áudios ou vídeos) e os resume. Mas não é qualquer resumo! Ela os organiza no formato de um podcast, no qual dois apresentadores debatem de forma leve o tema dos arquivos originais. Tudo ali é criado por IA generativa, o resumo, os diálogos e as vozes dos apresentadores. E honestamente os resumos são excelentes e ótimos para se introduzir no tema. Por sua vez, o novo recurso de vídeo cria uma espécie de aula com apenas um apresentador de IA e cria imagens de fundo, como se fosse uma apresentação em sala de aula.

 

O mesmo NotebookLM permite o diálogo com até centenas de arquivos simultaneamente, servindo tanto para alguém encontrar pontos nos múltiplos arquivos ou mesmo fazer comparações fáceis geradas por IA. Ao responder, ele te mostra os arquivos que usou e inclusive os trechos, facilitando a consulta ao documento original.

O sistema também gera automaticamente resumos, um guia de estudo com uma espécie de prova para teste de conhecimento, mapas mentais, perguntas frequentes (FAQ), glossários, cartões de perguntas para estudar na lógica de quiz e o post de blog (este não!). A depender do tipo de material, o próprio sistema gera sugestões de como organizar o conhecimento, como por exemplo, um relatório técnico, um artigo de opinião, uma narrativa histórica ou a explicação de conceitos.

Ou ainda, formas alternativas, expandidas de ler textos. Mas todas distantes dos textos originais. Agora, simultaneamente, temos sistemas como o ChatPDF, no qual ao subir um PDF, ele não nos afasta do arquivo, abrindo o arquivo em um lado e uma IA do outro. Imediatamente, a IA já te sugere questões que ela considerou mais relevantes no conteúdo, mas você pode continuar “dialogando” com a IA sobre o texto. A qualquer momento, você também pode selecionar apenas um trecho no PDF e pedir para a IA resumir ou explicar apenas esse excerto. Você pode até selecionar um trecho no pdf e pedir explicações sobre um gráfico, sobre estatística ou qualquer coisa na prática.

Porém, já estamos no ponto em que não é preciso sequer abrir um site ou aplicativo específico. Ao usar navegadores com sistemas de IA generativa embutidos, como o Edge da Microsoft ou o Comet da Perplexity, cada site pode ser resumido ou ser fonte para uma conversação com a máquina. Em poucos segundos, a IA pode resumir desde uma matéria jornalística de fôlego quanto um vídeo de uma mesa redonda de mais de 2 horas de duração no Youtube, indicando inclusive a minutagem das falas.

Todo esse cenário indica que, gostemos ou não, entramos rapidamente em uma era de uma leitura expandida. Ela é expandida, porque agora não se limita ao ato de ler, podendo se transformar em resumos em texto, áudio ou vídeo. E ela também é expandida porque permite uma interação com múltiplos arquivos e fontes. O navegador Comet, por exemplo, permite que você interaja com múltiplas abas do navegador simultaneamente, ao exemplo do que o NotebookLM permite interação com vários arquivos de diferentes naturezas.

Devemos admitir que a leitura expandida pode abrir portas para pessoas que antes não conseguiam lidar com a densidade de certos materiais. Estudantes com dificuldades de leitura, por exemplo, podem usar os resumos como uma entrada inicial e depois se aprofundar nos textos originais. Para pesquisadores, a triagem rápida de artigos acadêmicos pode economizar tempo precioso e permitir escolhas mais informadas sobre o que vale a pena ser lido integralmente.

Então, podemos pensar em usuários que poderão estar fácil e habilmente extraindo dados de múltiplas fontes simultaneamente e fazendo cruzamentos e inferências complexas e mesmo capazes de produzir novo e significativo conhecimento.

Ao mesmo tempo, é preciso considerar que todo resumo ou seleção feita pela IA é também uma forma de curadoria. Isso significa que a máquina decide o que destacar, baseando-se em seus algoritmos e bancos de dados. E aqui mora o risco: que tipos de vozes, perspectivas ou informações podem estar sendo deixados de fora? Uma leitura expandida não é apenas maior, mas também filtrada, e isso pode afetar diretamente a diversidade de ideias às quais o leitor tem acesso.

Como eu, professoralmente, digo aos meus alunos, uma boa parte da aquisição do conhecimento está relacionada à fricção cognitiva, ou simplesmente ao esforço de tentar realizar uma tarefa. Em outras palavras, alguém só aprenderá a ler textos difíceis, bem… lendo textos difíceis. Ao ter dificuldade em ler um texto, isso prepara melhor seu cérebro para futuras incursões. Quanto mais tentativas, maior o ganho cognitivo, o que  ajuda na consolidação da memória de longo prazo e no desenvolvimento da capacidade de abstração. Ou seja, o caminho árduo da leitura integral não é apenas uma questão de tradição cultural, mas também de funcionamento cerebral.

E a IA generativa – facilmente disponível nas mãos de alunos – não apenas facilita este ato, ela praticamente o terceiriza. A IA decide o que é mais relevante, as perguntas a serem feitas e o que apresentar nos resumos. Fazer bons comandos ou prompts ajuda, mas está longe de ser uma solução.

Como eu também digo aos alunos, um livro complexo pode ser resumido a duas ou três frases, mas há uma diferença completa entre ler essas orações e a obra completa. Ao escrever um livro acadêmico, por exemplo, o autor vai reconstruir o cenário, apresentar dados de pesquisa, apresentar os principais argumentos presentes na questão e apresentar seus dados e argumentos.

Apesar de poderem ser resumidos em poucas frases, há um ganho cognitivo expressivo em ler, tradicionalmente, um livro. O valor da escrita longa, da narrativa densa e do argumento bem desenvolvido corre o risco de ser substituído por fragmentos, que frequentemente não serão representativos do pensamento complexo do texto original e muitas vezes inclusive trarão distorções ou mesmo erros.

Mas qual a saída então? Proibir telas e empurrar livros nos filhos e alunos? Como em qualquer caso, a proibição é certamente a pior atitude. Devemos também não adiantar o próximo apocalipse. A história da  tecnologia nos evidencia que raramente uma mídia substituí a anterior e mesmo quando isso ocorre há uma transição longa. A TV não substituiu o rádio, nem a internet acabou com ambos.

Os livros físicos ainda existem e ainda existirão por muito tempo, se é que algum dia vão acabar. Eles ainda são a base da formação de conhecimento no ensino básico e ainda são bastante valorizados no mundo acadêmico, portanto estão presentes de uma ponta a outra na aquisição e produção de conhecimento.

O caminho me parece ser o de letramento em seu sentido mais amplo. Os mais jovens geralmente sabem usar muito bem as tecnologias, mas desconhecem seus impactos negativos e ainda carecem de mais visão crítica sobre as razões para adotar ou não a tecnologia em seu dia a dia.

O uso indiscriminado da IA para ler no lugar da pessoa gera uma perda cognitiva e rapidamente uma dependência excessiva da ferramenta. Trata-se de uma tarefa ingrata, mas precisamos convencer os jovens que muitas vezes o caminho mais difícil é o melhor. Adotar hábitos regulares de leitura ajudam em todas as áreas da vida. Mesmo empresários bem sucedidos e pessoas que criam sistemas de IA sabem disso e estes exemplos podem ser importantes no processo de convencimento.

Desenvolver essa consciência e esse hábito nos jovens é parte do objetivo. Paralelamente, os educadores precisam aceitar o uso da IA na pedagogia e entendendo que ela não precisa ser sempre um desafio ou adversário a ser superado. A leitura mediada por IA e expandida por natureza pode funcionar bem como porta de entrada.

Professores podem, por exemplo, propor atividades em que os alunos comparem o resumo feito pela IA com o texto original, analisando o que foi perdido, o que foi enfatizado e o que foi deixado de fora. Esse tipo de prática não rejeita a tecnologia, evidencia que a leitura integral nunca pode ser totalmente substituída e coloca a IA à serviço da reflexão crítica.

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Compreender “quando” e mesmo “se” devemos usar IA para uma tarefa é outra parte significativa da questão. Sendo honesto, muitas vezes os resumos de longos vídeos poderão ser úteis. Os resumos de IA nos ajudarão a decidir quais os melhores artigos científicos ou livros a serem lidos. Não se trata de rejeitar as benesses da tecnologia, mas compreender o seu lugar. Ela não deve substituir as habilidades essenciais de um ser humano, como leitura, análise, síntese e interpretação de resultados.

A IA não vai sumir. Vai na verdade ser cada vez mais constante. Formas híbridas, expandidas e diferentes de leitura, escrita e afins vão se naturalizar em pouco tempo. Nossa tarefa, me parece, é alinhá-la a práticas e valores humanos.