Câmara caminha para desmontar e desregular saúde suplementar no Brasil

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A saúde suplementar no Brasil é um setor extremamente conflituoso e que ainda possui uma regulação bastante imperfeita. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não tem se mostrado eficiente para criar e fiscalizar uma regulação equilibrada do mercado, capaz de acomodar interesses dos cidadãos/consumidores, das operadoras de planos de saúde, dos profissionais de saúde, da saúde pública e da sociedade como um todo. A falta de eficácia da ANS tem gerado muitos conflitos no âmbito da saúde suplementar que acabam desaguando no Judiciário.

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

A judicialização da saúde suplementar é um fenômeno de grandes dimensões no Brasil. A maioria das demandas judiciais contra planos e seguros privados é motivada:

  1. pela negação, pelas operadoras, de coberturas assistenciais, envolvendo medicamentos, terapias e tratamentos diversos, cirurgias, hemodiálise, radioterapia, sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e psicoterapia, assim como outros tratamentos ambulatoriais e hospitalares.
  2. pelos reajustes excessivos de mensalidades praticados pelas operadoras;
  3. pelo direito de continuidade do contrato para aposentados e demitidos;
  4. pela rescisão unilateral de contratos pelas operadoras.

O debate sobre a adequada regulação do setor de saúde suplementar também já foi discutido nos tribunais superiores, especialmente sobre se o rol de procedimentos fixado pela ANS é taxativo ou exemplificativo.

Todo esse cenário conflituoso, que gera tanta insegurança jurídica, justificaria que o Congresso Nacional se dedicasse a uma revisão legislativa capaz de ajustar a regulação atualmente existente em benefício da saúde dos brasileiros, dos consumidores e de um mercado responsável e saudável de seguros e planos de saúde.

Seria muito bem-vinda uma legislação que esclarecesse de forma direta e objetiva os direitos básicos de um consumidor de plano de saúde, tendo como base um “plano de referência” integral, tal qual já previsto pela Lei 9.656/1998. Uma legislação que não permita que as empresas do setor abusem de idosos e grupos vulneráveis, ou que cobrem por serviços que não prestam efetivamente, onerando o SUS e enriquecendo-se ilicitamente. Uma legislação que organizasse um mercado sadio, preocupado com a saúde de seus consumidores, honesto quanto aos lucros possíveis de serem obtidos em um serviço de saúde, ciente de seu papel social.

Afinal de contas, sempre bom lembrar que o art. 197 da Constituição Federal prevê que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.

Saúde é direito, não é mercadoria livre para o mercado empacotar da forma que quiser.

Para organizar um sistema de saúde suplementar adequado no Brasil é preciso uma legislação capaz de garantir que este sistema consiga, de fato, adicionar novos serviços de saúde ao sistema de saúde brasileiro como um todo e seja capaz de desafogar o SUS.

Também é fundamental garantir que o setor ofereça aos cidadãos serviços de saúde (efetivamente) suplementares aos oferecidos pelo SUS, de qualidade e resolutivos. Caso contrário, o efeito será tão somente uma sobrecarga ainda maior ao SUS e um mercado incapaz de atender às necessidades mais básicas de saúde das pessoas.

A Lei 9.656/1998, embora imperfeita, conseguiu organizar o setor de saúde suplementar ao ponto deste possuir, atualmente, em torno de 50 milhões de usuários no Brasil. Reformá-la é importante, desde que se garanta a manutenção de sua essência, que é a obrigatoriedade dos planos de saúde oferecerem, no mínimo, os “planos de referência” estabelecidos na Lei e regulamentados pela ANS.

O PL 7419/2006, que tramita há 19 anos na Câmara, propõe uma ampla reforma na Lei dos Planos de Saúde. Pode garantir direitos ou simplesmente extingui-los. Daí a importância de acompanhá-lo de perto.

Os debates sobre o texto vinham avançando sob a relatoria do deputado Duarte Jr. (PSB-MA), que procurava equilibrar os diversos interesses e redigir um substitutivo capaz de, ao mesmo tempo, equilibrar o mercado e garantir os direitos dos cidadãos/consumidores.

No entanto, nesta semana, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), destituiu o relator do projeto. A razão que veio a público para essa súbita destituição foi o incômodo gerado pela firme condução do processo legislativo que vinha sendo feita pelo relator destituído.

Veiculou-se que o deputado Duarte Jr. estava sendo muito severo com as operadoras de planos de saúde e teria até aventado a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o setor. Mal não faria, dado o que já tivemos conhecimento sobre a conduta da Prevent Senior durante a pandemia no Brasil, bem detalhadas no relatório final da CPI da Covid no Senado.

Para assumir a relatoria Motta escolheu um aliado seu, o deputado Domingos Neto (PSD-CE). Segundo divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo, “Neto é um deputado melhor avaliado por uma ala do centrão e da direita que considera as posições de Duarte Jr. excessivamente pró-consumidor”.

Neto disse ainda à Folha que PL 7419 é de “grande relevância” e precisa avançar. “Sou a favor que se tenha planos mais baratos, com maior acesso, que cheguem às pessoas mais pobres, contanto que tenha alguma regulação, caso contrário não tem segurança jurídica”, declarou o novo relator.

Com essa afirmação, o novo relator deixa claro seu viés ultraliberal e aponta que irá fazer avançar propostas que fragmentarão e desregularão ainda mais o setor de saúde suplementar. No cardápio, temas como a rescisão unilateral de contratos e a flexibilização do plano de referência, com a abertura da possiblidade de venda de planos populares que não cobrem internações ou até atendimentos de urgência e emergência.

Organizar um sistema de saúde complexo como o brasileiro não é tarefa fácil. A saúde é um direito de todos e dever do Estado, e o setor privado de saúde brasileiro deve ser regulado para auxiliar o país na construção de um sistema de saúde com cobertura universal, que promova o cuidado integral, que oferte serviços públicos e privados de qualidade e complementares entre si. Acima de tudo, um sistema de saúde resolutivo para as necessidades de saúde integral de um cidadão.

Sempre bom lembrar que o cidadão que tiver um plano de saúde incapaz de cuidar de sua saúde de forma integral irá acabar, mais cedo ou mais tarde, necessitando do SUS. No entanto, tal lógica irá desorganizar ainda mais o sistema público, na medida em que o SUS segue uma lógica de portas de entrada bem definidas, itinerário terapêutico com referências e contrarreferências de serviços e continuidade no cuidado. Será então criado um ciclo vicioso que irá sobrecarregar ainda mais o SUS e fragilizá-lo ainda mais perante a sociedade.

Não há sentido construir um setor privado de saúde suplementar que não suplemente adequadamente a rede de serviços de saúde do Brasil e que terá como efeito colateral afogar o SUS com demandas de saúde de alto custo e complexidade. Antes de se criar planos populares ultrassegmentados, convém aos nossos parlamentares refletir sobre a natureza da saúde suplementar no âmbito do sistema de saúde brasileiro como um todo. Deve-se refletir, ainda, sobre como se dará a relação entre o setor de saúde suplementar e o SUS, para evitar os efeitos acima descritos.

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Finalmente, convém lembrar aos nobres parlamentares que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, e não meras mercadorias a serem embaladas e vendidas em feiras livres.

É preciso acompanhar de perto os próximos andamentos do PL 7419. Esta legislatura vem se mostrando pródiga em fazer avançar propostas que contrariam a maioria da população e massacram grupos vulneráveis, ao mesmo tempo em que beneficiam os já bastante privilegiados econômica e politicamente.

Cuidado! Depois da PEC da bandidagem, da não aprovação da Medida Provisória que taxava os ricos e do aumento obsceno das verbas para o fundo eleitoral, a próxima bola da vez na Câmara dos Deputados pode ser a sua saúde.