A tramitação do PL 2338/2023, que busca instituir um marco legal para a inteligência artificial no Brasil, representa um passo histórico não apenas no campo da inovação tecnológica, mas também na forma como o Estado brasileiro se organiza diante de desafios que transcendem setores, fronteiras e temporalidades.
Ao tratarmos de IA, não falamos apenas de uma ferramenta técnica, mas de uma força transformadora que, de maneira ubíqua, reconfigura setores econômicos, práticas sociais e estruturas institucionais. O desafio do legislador, portanto, é mais amplo do que o de regulamentar uma tecnologia: é o de repensar a arquitetura regulatória de um país em face de uma revolução transversal.
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Nesse cenário, a ideia de criar uma autoridade de supervisão geral em matéria de Inteligência Artificial surge como elemento central para garantir coerência e uniformidade na aplicação dos princípios fundantes dessa tecnologia. Transparência, ética, accountability, proteção de direitos fundamentais e mitigação de riscos não são atributos que possam variar conforme o setor em que a IA esteja aplicada.
São valores universais que precisam ser preservados em qualquer campo em que a tecnologia atue. Uma instância central, ao zelar por esses pilares, desempenha um papel de guardiã de uma visão sistêmica do Estado e da sociedade.
Por outro lado, seria um equívoco imaginar que essa centralidade regulatória deva anular a relevância das agências reguladoras setoriais. É justamente na interface entre princípios gerais e expertise técnica que se encontra a solução para o dilema regulatório brasileiro.
As agências reguladoras – Anatel nas telecomunicações, Anvisa e ANS na saúde, ANA em água e saneamento, Aneel na energia, entre tantas outras – acumulam conhecimento técnico, experiência regulatória e capacidade de interlocução com agentes econômicos que não podem ser substituídos por uma autoridade geral. Ignorar esse patrimônio institucional seria enfraquecer a efetividade da própria regulação.
A importância das agências setoriais reside no fato de que os riscos, impactos e potencialidades da IA variam de maneira significativa conforme o setor em que são aplicados. A utilização da IA em um sistema de diagnósticos médicos não apresenta os mesmos desafios que o uso em sistemas financeiros ou em redes de telecomunicações.
Cada setor carrega uma historicidade própria, arcabouço normativo específico e práticas de mercado que não podem ser generalizadas. A regulação setorial garante que as especificidades sejam respeitadas, ao mesmo tempo em que se assegura a convergência com princípios transversais definidos pela autoridade central.
Assim, o desenho institucional ideal não está na exclusão de uma ou outra instância, mas na sua articulação orgânica. A autoridade central deve atuar como vetor de unidade, estabelecendo diretrizes mínimas e horizontes normativos claros. As agências, por sua vez, devem funcionar como polos de especialização, capazes de traduzir essas diretrizes em regras concretas e aplicáveis aos seus setores. Esse arranjo, além de respeitar a Constituição e a tradição regulatória brasileira, permite que o país evite tanto a fragmentação quanto a rigidez excessiva.
É preciso reconhecer que, sem uma autoridade central, o Brasil corre o risco de incorrer em lacunas regulatórias. Poderíamos enfrentar situações em que nenhuma agência se reconheça competente para agir sobre determinado caso, deixando cidadãos e empresas em um vácuo de proteção.
Além disso, a ausência de coordenação pode gerar conflitos de interpretação, sobreposições normativas e insegurança jurídica para os agentes regulados. O mercado precisa de clareza, previsibilidade e confiança, elementos que apenas uma arquitetura regulatória bem calibrada pode oferecer.
Mas também é preciso advertir contra o risco oposto: uma autoridade central hipertrofiada, que pretenda regular todos os aspectos da IA em todos os setores, poderia sufocar a especialização, engessar processos e comprometer a agilidade da resposta regulatória. Em setores de alta complexidade técnica e rápida inovação, como telecomunicações e finanças, a regulação precisa ser precisa, flexível e informada por conhecimento especializado. Apenas as agências setoriais possuem condições de desempenhar esse papel com efetividade.
Nesse sentido, diversos mecanismos institucionais podem ser pensados para articular essa cooperação entre autoridade central e agências setoriais. Um deles é a previsão de cláusulas de prevalência, que estabeleçam a hierarquia normativa entre princípios gerais e regras específicas.
Outro é a criação de comitês interagências permanentes, nos quais a autoridade central e as agências setoriais dialoguem de forma contínua para alinhar diretrizes e evitar conflitos. Também é possível instituir sistemas de consulta recíproca, garantindo que nenhuma norma sobre IA seja publicada sem diálogo com as demais instâncias competentes.
Outro instrumento inovador são os sandboxes regulatórios. Ao permitir que inovações em IA sejam testadas em ambientes controlados, esses mecanismos oferecem espaço para experimentação responsável e segura. A coordenação entre autoridade central e agências setoriais nesse contexto é vital: a primeira garante o respeito a princípios gerais, enquanto as segundas asseguram a pertinência técnica das soluções testadas em seus setores. O resultado é um processo de inovação regulatória que beneficia tanto a sociedade quanto os agentes econômicos.
O modelo integrado de regulação traz benefícios evidentes. Ele evita lacunas e contradições, distribui responsabilidades de forma racional e fortalece o enforcement regulatório. Ao mesmo tempo, garante que o Brasil esteja alinhado às tendências internacionais, como o AI Act da União Europeia, que também procura equilibrar a necessidade de normas gerais com a competência de órgãos especializados. Em um mundo em que a governança da IA está se tornando pauta geopolítica, o Brasil não pode se dar ao luxo de construir um sistema regulatório dissonante ou ineficaz.
Esse é, portanto, um momento de escolhas institucionais. Como membro do Grupo de Trabalho ministerial responsável pela política brasileira de IA e como responsável pelo tema na Anatel, tenho refletido sobre essas questões de forma constante. Em audiências públicas na Câmara dos Deputados, inclusive na Comissão Especial dedicada ao PL 2338, e em eventos nacionais e internacionais, tenho defendido a necessidade de um Estado que se pense de maneira orgânica. Um Estado em que as instituições não competem entre si, mas se articulam de modo complementar, servindo ao interesse público com eficiência e responsabilidade.
Pensar o Estado organicamente significa reconhecer que a complexidade contemporânea não pode ser enfrentada por estruturas fragmentadas ou sobrepostas. Significa admitir que a cooperação interinstitucional é uma exigência para a efetividade das políticas públicas, em que escolhas sem essa sinergia sequer podem ser consideradas. Quando se trata de uma tecnologia tão capilar e disruptiva como a inteligência artificial, essa exigência se torna ainda mais aguda. A ausência de coordenação entre entes reguladores comprometeria não apenas a eficácia normativa, mas também a confiança da sociedade e dos mercados.
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Em última análise, o êxito do Brasil no campo da regulação da IA dependerá de nossa capacidade de harmonizar unidade e diversidade. Unidade para preservar valores universais e oferecer um horizonte normativo claro. Diversidade para respeitar as peculiaridades de cada setor e valorizar o conhecimento especializado já existente. Se soubermos articular essas duas dimensões, poderemos construir um marco regulatório que seja, ao mesmo tempo, robusto, flexível e capaz de projetar o Brasil como protagonista global na governança da Inteligência Artificial.
O futuro da regulação da IA é, portanto, o futuro do próprio Estado brasileiro em sua capacidade de se renovar diante dos desafios da modernidade. Não se trata apenas de um debate técnico, mas de uma decisão política de grande envergadura. Se conseguirmos desenhar um sistema que una autoridade central e agências setoriais em torno de um propósito comum, estaremos não apenas protegendo cidadãos e fomentando inovação, mas também fortalecendo a democracia e a institucionalidade do país.