Pejotização: Mendes fala em consensos e governo se posiciona contra modelo irrestrito

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O ministro Gilmar Mendes concluiu nesta segunda-feira (6/10) a audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a pejotização no Brasil falando em “consensos possíveis” mesmo diante de posições antagônicas. O magistrado destacou que a exposição dos painelistas serviu para a construção de pontes e ampliação do olhar sobre o tema.

Uma parte dos painelistas defendeu que a pejotização irrestrita diminui a proteção ao trabalhador, atrapalha a arrecadação tributária e põe em xeque a sustentabilidade de políticas públicas como a Previdência Social e o FGTS – neste grupo estão representantes do governo Lula, sindicatos de trabalhadores, membros da Justiça do Trabalho e especialistas. Outro ponto de preocupação é se caberá à Justiça do Trabalho ou Cível a competência para apontar as fraudes nos contratos de pejotização.

As posições mais ativas contra a pejotização irrestrita vieram de membros do governo federal. O ministro do trabalho Luiz Marinho, por exemplo, disse que existe “fraude” travestida de pejotização.

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O advogado-geral da União, Jorge Messias, chamou a pejotização de “cupinização dos direitos trabalhistas brasileiros” e chamou atenção para o déficit superior a R$ 60 bilhões na Previdência Social entre 2022 e 2024 e perdas de R$ 24 bilhões ao FGTS por conta da pejotização. Contudo, ponderou que existem formas legítimas de pejotização, como relação de franquia, consultorias independentes, constituição de sociedade de propósito específico (SPEs), entre outros.

Outra parte defendeu a liberdade econômica e contratual e a modernização das normas trabalhistas frente às novas formas de trabalho. Neste grupo estão entidades empresariais e especialistas.

Um terceiro grupo defendeu uma solução intermediária. O economista Felipe Salto, por exemplo, sugeriu um regime de tributação progressiva de pessoas jurídicas para evitar fraudes e não impactar na arrecadação.

Audiência

Relator do recurso sobre o tema em julgamento no STF, o ministro Gilmar Mendes afirmou, no início da audiência pública, que os três pontos centrais que vão nortear as discussões da audiência são:

A competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas em que se discute a existência de fraude no contrato civil ou comercial de prestação de serviços;

A validade da contratação civil ou comercial de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços;

O ônus da prova está relacionado à alegação de fraude na contratação civil, avaliando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante.

O tema da pejotização tem grande impacto social e econômico: atualmente, mais de 15 milhões de brasileiros atuam como microempreendedores individuais (MEIs), e cerca de 34,6 mil processos estão suspensos na Justiça do Trabalho aguardando uma definição, segundo dados do Painel de Gestão de Precedentes do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Ao todo, foram selecionados 48 expositores para participar da audiência, entre os 508 inscritos e especialistas convidados. O ministro Gilmar Mendes levou em consideração os requisitos legais de experiência e autoridade no tema, a relevância das contribuições e a limitação de tempo da audiência.

O JOTA separou alguns trechos com posições sobre o tema. Veja abaixo:

Competência da Justiça do Trabalho ou contrato civil

O especialista José Pastore defendeu que eventuais disputas devem ser dirimidas pela Justiça civil. Contudo, ponderou que, para afastar as fraudes que mascaram vínculo empregatício, é importante procurar entender bem a forma de trabalhar desses profissionais. Para ele, de maneira específica, haverá fraude quando o PJ trabalhar sem autonomia para tomar suas decisões e obedecendo as regras do vínculo empregatício. Flávio Unes, representando a Confederação Nacional do Transporte e Federação das Indústrias do Estado de São Paulo também defendeu que a relação seja regida por contrato civil.

O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), em São Paulo, Valdir Florindo, defendeu que a Justiça do Trabalho é competente para julgar se existe fraude ou não nos contratos de pejotização. Florindo afirmou que a pejotização é a negação da própria condição do trabalhador e que ela viola o princípio da vedação do retrocesso social.

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Na avaliação de Florindo, os contratos entre PJs são legítimos, e cumprem papel essencial na dinâmica econômica, mas a pejotização de trabalhadores é incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro. O presidente do TRT2 disse que a pejotização dos trabalhadores “aniquila” o núcleo essencial dos direitos trabalhistas previstos na Constituição e viola o princípio da vedação à proteção insuficiente consagrada na Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH). “Hoje estamos aqui para evitar que trabalhadores sejam colocados abaixo da lei”, afirmou.

Ônus da alegação de fraude

Representando a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), Gustavo Binenbojm destacou que o STF já chancelou as mudanças legislativas sobre a terceirização. Defendeu que caberá à Justiça comum dirimir dúvidas em fraudes nos contratos de pejotização e que o ônus da prova da demonstração seja de quem alegue a fraude.

Pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Ivo Dall’Acqua Júnior também defendeu que o ônus cabe a quem argumenta que há fraude. “Presumir fraude seria inverter a lógica processual”, afirmou. Segundo ele, este ponto contribuirá para proteger a ordem jurídica e a segurança econômica.

O juiz do trabalho da 1ª Região Otávio Calvet defendeu que é possível cindir a competência para definir a fraude na pejotização. O magistrado sugeriu cindir a competência para que a justiça comum analise se há ou não há fraude e uma vez constatada a fraude, remeter para a Justiça do Trabalho verificar se há ou não vínculo de emprego. Quanto ao ônus da alegação de fraude, Calvet argumentou que, se o trabalhador for vulnerável, o ônus da prova deve ser da contratante, para provar que a relação não é uma fraude. Agora, se for um hipersuficiente, o ônus da prova cabe ao trabalhador.

Previdência, FGTS e arrecadação tributária

O especialista Felipe Scudeler Salto sugeriu uma proposta no “meio do caminho” para que a pejotização não tenha impactos fiscais e previdenciários. Salto sugere um arranjo intermediário de modo que o Estado consiga garantir arrecadação suficiente para sustentar políticas públicas e a previdência social. Para ele, um caminho profícuo é a introdução de uma progressividade na tributação de PJs. Segundo cálculos apresentados pelo especialista, poderiam contribuir sobre o faturamento para a previdência social na ordem de R$ 129 bilhões.

O diretor do Departamento do Regime Geral de Previdência Social, Eduardo da Silva Pereira defendeu que o processo de pejotização desfaz o pacto social construído em torno da Previdência. Hoje, o financiamento é tripartite entre trabalhadores, empregadores e governo. O processo de pejotização tira o empregado do processo, e quem vai financiar é só o governo e o trabalhador.

De acordo com Pereira, atualmente são 8,5 milhões de MEIs que estão recolhendo para a Previdência, outros 8 milhões que não pagam e existe um grande volume enorme de PJs criadas que podem estar trabalhando sem o recolhimento de Previdência Social. O diretor também destacou que, se 10% dos trabalhadores migrarem para formas de contribuição subsidiadas (como o MEI) a perda será de R$ 47 bi a 52 bi por ano no fundo do Regime Geral.

O secretário executivo do Ministério da Previdência, Adroaldo da Cunha Portal, ressaltou que quem precisa de seguro social não são as empresas, mas os trabalhadores que se acidentam e ficam doentes.

O especialista Estevão Mallet destacou que o elemento distintivo mais importante entre pejotização e fraude é a subordinação. Na pejotização regular não pode haver a subordinação do prestador de serviço ao tomador. A subordinação jurídica é a prerrogativa do empregador de dizer o que fazer, como fazer e de que modo fazer, ou seja, modular detalhadamente a execução do serviço.

Mallet defendeu que no Brasil se tributa muito o trabalho assalariado, o que faz com que a diferença do salário bruto e líquido seja grande. Segundo ele, para o empregador o custo do trabalho assalariado é maior do que o custo do trabalho individual, o que cria uma “equação perversa”. Por isso, o especialista argumenta que é preciso pensar em novas formas de financiamento da seguridade social que não envolva a tributação do trabalho assalariado. “O mundo mudou e isso faz necessário novas fontes de financiamento”.

Chefe da Divisão de Análises de Ilícitos Tributários da Subsecretaria de Fiscalização da Receita Federal do Brasil Afrânio Rodrigues Bezerra Filho contou que nas fiscalizações feitas sobre contratos de PJs se observa questões trabalhistas como emissão de nota fiscal pelo prestador com férias, 13º ou duplicação de um determinado mês. Ainda, a fiscalização pegou observância de horários, controle de escala, estipulando de carga horária de 8 horas diárias e o direito de se ausentar das atividades por até 30 dias sem prejuízo de remuneração.

Bezerra Filho apresentou estudo da Receita Federal sobre o impacto em relação à arrecadação da contratação do MEI e como empregado. “Já estamos vendo em 2025, uma diferença de 26 bi na tributação a depender da situação da forma de contratação. Isso já perdemos arrecadação. Temos uma redução de quase 90% se adotar forma ampla e irrestrita de MEIs na situação de empregados, impactando na arrecadação”, disse.

Pejotização e precarização

Representante do Ministério do Trabalho e Emprego, Lorena Guimarães afirmou que a pejotização ameaça a estrutura do sistema de proteção social brasileiro. “O que está em jogo não é apenas um modelo de contratação, é um modelo de sociedade”.

A auditora fiscal argumentou que os efeitos da prática são devastadores não apenas para o trabalhador, mas para toda sociedade. Segundo ela, entre 2022 e 2025 o déficit gerado pela Previdência Social chegou a R$ 70 bi, somando-se os 8 bilhões para sistema S e R$ 27 bilhões que deixaram de ser recolhidos para o FGTS.

“Isso significa menos moradia popular financiada pela Caixa, menos obras de saneamento básico, menos crédito habitacional para famílias de baixa renda. O FGTS não é apenas conta individual do trabalhador, ele é um instrumento coletivo de desenvolvimento social”, afirmou. “A pejotização enfraquece políticas de inclusão social, como programas de aprendizagem profissional e inserção de PCDs no mercado de trabalho”, disse.

O presidente da Força Sindical Miguel Eduardo Torres afirmou que a pejotização pode parecer uma modernização contratual, mas na realidade se revela mecanismo de precarização que traz graves prejuízos não apenas aos trabalhadores, mas também para toda sociedade. Em sua avaliação, a pejotização significa a supressão de direitos trabalhistas fundamentais, férias, 13, jornada definida, hora extra, licença maternidade, entre outros. Para Torres, a pejotização retira direitos que são conquistas históricas que deixam de existir quando o trabalhador é artificialmente transformado em PJ.

Torres lembrou que a pejotização reduz drasticamente a arrecadação previdenciária, esvazia o FGTS, que deixa de ser recolhido e enfraquece a representação sindical.

Ainda, Torres disse que, no campo econômico, a pejotização gera concorrência desleal entre empresas, já que aquelas que cumprem a legislação trabalhista ficam em desvantagem. Em sua visão, o resultado é a judicialização massiva, pois milhares de trabalhadores vão procurar reconhecer os vínculos trabalhistas.

Por fim, em última instância, Torres expôs que a pejotização representa retrocesso social e afronta direta aos princípios constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana, o valor do trabalho. Assim, permitir pejotização irrestrita é abrir caminho para a precarização de direito.

Representando a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Alexandre Herculano Coelho, defendeu que negar a validade da contratação de PJs vai gerar insegurança jurídica e passivos nos contratos de prestação de serviços. Herculano argumentou que vai prejudicar a liberdade de iniciativa, e prejudicar as pessoas que fundam as empresas para prestar serviços.

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Contudo, Herculano ponderou que a CNI não é a favor da banalização do instituto. “Como podemos ser favoráveis à contratação de garis, pedreiros como PJ? Somos contra isso. Mas não podemos também ter o péssimo hábito de tratar exceções como regras. Fraudes devem ser energicamente combatidas. Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito”.

Cooperativismo

Representando a Cooperativa de Trabalho dos Profissionais de Informática, Assessoria e Consultoria Técnica (Coop It), Tatiane Arruda Santos disse que a entidade não defende a pejotização ampla e irrestrita e compreende os riscos. Santos afirmou que a Coop It defende que o país precisa de um meio termo equilibrado, com um modelo que coloque em prática a teoria do ganha-ganha e sugeriu o cooperativismo de trabalho.

Santos afirmou que o cooperativismo se diferencia radicalmente da pejotização. O cooperativismo contribui para a previdência por meio de retenção pela cooperativa. O cooperado é amparado por lei, com direitos assegurados, seguro de acidente pessoais, descanso remunerado, autogestão , horas adicionais e participação nos resultados. O ingresso é livre.

Diferentemente das revoluções anteriores, Santos afirma que agora a transformação é veloz e disruptiva. Isso leva a automação de tarefas de rotinas e a criação de novas funções. “Não estamos falando de futuro, estamos inseridos nesse movimento hoje e precisamos de formas regulatórias modernas. O Brasil conta com 28,5 milhões de cooperados”, disse.