“O edital é a lei do concurso” é uma das expressões mais conhecidas e repetidas no Direito Administrativo. Atribuída a Hely Lopes Meirelles, a referida fórmula busca dar ao edital de um concurso público o status de lei. A ideia é, por um lado, possibilitar o controle do Judiciário sobre os atos de contratação de pessoal no serviço público, e, por outro lado, limitar este controle ao aspecto da legalidade – isto é, ao dever da administração de respeitar as disposições editalícias.
Desde então, a preocupação tem recaído, fundamentalmente, sobre questões formais dos concursos públicos, não se dando muita importância ao que o concurso busca avaliar: o perfil de candidato que a administração necessita, se as formas de avaliação são adequadas para selecionar aquele perfil de candidato, se o conteúdo cobrado é compatível ao cargo ofertado, dentre outras questões que podemos chamar de “materiais”.
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Contudo, alguns trabalhos acadêmicos se propuseram a lançar este olhar aos editais de concursos públicos. Seus achados chamam a atenção para o problema geral dos editais em relação às habilidades e competências esperadas dos candidatos.
Em pesquisa de Fernando de Castro Fontainha ao lado de outros autores (2014), foram analisados os editais de concursos públicos nacionais de 20 órgãos federais entre os anos 2001 e 2010, que totalizaram 698 processos de seleção e mais de 41 mil vagas. Ao se voltar ao modo como os candidatos foram avaliados, verificou-se que 96,7% dos concursos tiveram prova de múltipla escolha como etapa de avaliação, e nenhum previa provas práticas que poderiam emular ou simular contextos esperados na atividade do cargo.
Estudo de Fernanda Geremias Leal em coautoria com outros pesquisadores (2014) se propôs a analisar 57 provas de concursos públicos realizados por Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) entre os anos 2010 e 2014 para o cargo de Secretário Executivo. Das quase 3 mil questões analisadas pelas autoras, observou-se que 23,17% eram de conhecimentos gerais e 76,83% de conhecimentos específicos. Destas, apenas um terço eram afetas às atribuições descritas para o cargo. Além disso, apenas três editais previram provas discursivas e cinco editais exigiram redação.
Nas palavras das autoras, “esse traço de perfil de mensuração demonstra que elas não serviam para avaliar o conhecimento em si, mas apenas se o candidato conhecia as competências de um secretário-executivo, exigindo dele um saber ‘sobre’, não um saber ‘como’”. Para avaliar o “como fazer”, e a competência do candidato, as autoras sugerem a realização de provas práticas.
Caio Stefano Ruiz Donatangelo e Ana Lúcia Padrão dos Santos (2018) tiveram como objeto de pesquisa dez editais de concursos municipais no estado de São Paulo, publicados em 2015 e 2016, em relação ao cargo de professores de Educação Física do ensino básico público, que totalizaram 140 vagas. Foram analisadas 484 questões, que chamaram a atenção pelo alto número de conteúdos relativos a “conhecimentos do ensino básico”. Apenas pouco mais de um terço das questões fazia referência à literatura específica da área da Educação Física.
Por fim, trabalho de Josimar Martineli Teixeira (2019) sobre concursos públicos em Belo Horizonte, entre os anos de 2009 e 2018, se propôs a analisar 29 editais, que contemplavam 7 mil vagas para diferentes cargos e níveis. Os dados levantados pelo autor demostraram que houve predominância de provas objetivas de múltipla escolha, e que “a principal competência avaliada é o conhecimento teórico do candidato e a capacidade de aprendizagem e memorização de conteúdo”, que não se prestam a avaliar competências técnicas e comportamentais.
Certamente há outros trabalhos que se dedicaram a analisar a adequação de editais de concursos públicos para a avaliação de competências. E espera-se que outros mais venham a promover este tipo de análise.
Isso porque a Lei 14.965/2024, que dispõe sobre normas gerais para concursos públicos, prevê que “o concurso público tem por objetivo a seleção isonômica de candidatos fundamentalmente por meio da avaliação dos conhecimentos, das habilidades e, nos casos em que couber, das competências necessários ao desempenho com eficiência das atribuições do cargo ou emprego público, assegurada, nos termos do edital do concurso e da legislação, a promoção da diversidade no setor público” (art. 2º, caput), sendo habilidades a “aptidão para execução prática de atividades compatíveis com as atribuições do cargo ou emprego público” (art. 2º, II), e as competências os “aspectos inter-relacionais vinculados às atribuições do cargo ou emprego público” (art. 2º, III).
A literatura aponta que os editais devem ser mais do que uma lei do concurso público no sentido formal; é necessário, como agora previsto em lei, olhar para as habilidades e competências almejadas para o serviço público.