Este é o terceiro artigo da série dedicada à gênese da Advocacia-Geral da União (AGU) e à análise crítica de sua estrutura normativa e institucional. Nos artigos anteriores, mostramos como a AGU está estruturada atualmente, quais são seus principais desafios de atualização e como, no período pré-1988, as funções da advocacia pública estavam dispersas no âmbito federal.
Defendemos, ainda, que a União não criou um modelo pioneiro, mas reproduziu soluções já consolidadas nos estados. Em várias unidades da federação, as procuradorias estaduais haviam assumido com êxito a representação judicial e extrajudicial, bem como a consultoria jurídica dos entes públicos, separando essas funções das atribuições do Ministério Público.
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Agora, voltamos o olhar para os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, com foco na construção do que viria a ser o art. 131 da Constituição de 1988, a partir do chamado Anteprojeto Arinos. A necessidade de desvincular a defesa judicial da União das atribuições do Ministério Público Federal (MPF) foi colocada desde os primeiros momentos da Constituinte. Inspirados na experiência estadual, parlamentares defenderam a criação de uma instituição própria para exercer essas funções.
No início dos trabalhos, em 5 de maio de 1987, o deputado Ruben Figueiró apresentou seu posicionamento sobre a composição do sistema de justiça, ressaltando a importância de a advocacia constar formalmente no texto constitucional.
Foi ainda mais incisivo ao tratar da defesa dos interesses da União em juízo: para ele, atribuir essa função ao Ministério Público Federal contrariava a natureza do órgão — voltado à defesa da sociedade — e prejudicava a proteção dos interesses da União. Defendeu, portanto, que essa tarefa fosse confiada a um órgão estruturado especificamente para o exercício da advocacia, como já ocorria em diversos estados. Em suas palavras:
“A União precisa ter a sua advocacia própria, sem utilizar-se dos serviços do Ministério Público. Estou sugerindo à Assembléia Nacional Constituinte que o Ministério Público Federal não exercite a advocacia da União e que esta seja deferida a um corpo de advogados, restabelecendo-se o Serviço Jurídico da União. A estrutura dos servidores públicos federais dispõe de algumas categorias, exclusivas de bacharéis em Direito, que podem assumir a advocacia e a representação da União em juízo. Aqueles servidores já exercem a advocacia consultiva. São os assistentes jurídicos, os procuradores autárquicos, os procuradores da Fazenda Nacional, os advogados de ofício e os procuradores junto ao Tribunal Marítimo” (Disponível em https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/N004.pdf, p. 294, acesso em 7/8/2025).
Semelhante defesa foi feita na sessão de 4 de junho de 1987, pelo constituinte Nilson Gibson, quando tratava da organização do Ministério Público, ao dizer que:
“Fortaleça-se, como se espera ser feito, o Poder Judiciário; tome-se o Ministério Público independente do Executivo, retirando-se do Procurador-Geral da República a função de advogado daquele Poder, função essa que poderá ser desempenhada pelos Procuradores de Ministérios, como o da Previdência, o da Fazenda e os demais, que deveriam ser os verdadeiros advogados do Estado. Desta maneira, estar-se-ia também fortalecendo uma classe hoje sem função até no Supremo Tribunal Federal, uma vez que os procuradores da República, que ali representam a União, em vez disso poderiam e deveriam representar o povo” (v. https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/071anc04jun1987.pdf#page=, p. 30, acesso em 7/8/2025).
Essa proposição orientou os trabalhos constituintes de estruturação do Estado e dos órgãos da República no regime democrático que se inaugurava. Desde o início, estava presente a ideia de que, uma vez estruturado o então Serviço Jurídico da União, suas funções englobariam também as atividades desempenhadas pelos procuradores autárquicos.
Tal diretriz já aparecia no Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, publicado em junho de 1987 (v. https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-219.pdf. Acesso em 2/7/2025). Referido Anteprojeto propunha a adoção do sistema de governo parlamentarista, no qual a chefia de Estado seria exercida pelo Presidente da República (art. 155) e a chefia de governo seria constituída pelo Primeiro-Ministro e pelos integrantes do Conselho de Ministros (art. 168). No Título V, dedicado à Organização dos Poderes e ao Sistema de Governo, havia capítulos sobre o Legislativo (Capítulo I), o Executivo (Capítulo II), o Governo (Capítulo III), o Judiciário (Capítulo IV), o Ministério Público (Capítulo V) e a Defensoria Pública e a Advocacia (Capítulo VI).
A Advocacia Pública não estava contemplada em capítulo específico, figurando como parte integrante do governo parlamentarista, mas já representava uma inovação relevante, pois no regime constitucional anterior não havia qualquer menção à sua existência.
Segundo o Anteprojeto, caberia à “Procuradoria-Geral da União” exercer as funções da advocacia pública no âmbito federal, com competência restrita à defesa judicial e extrajudicial. Ao Ministério Público — já fora do Judiciário — se vedava a “representação judicial e a consultoria jurídica das pessoas jurídicas de direito público” (art. 237, X).
Seja como for, a proposta de divisão das funções do MPF sofreu resistências corporativas, como dá conta o registro da edição de 8 de abril de 1988 do Jornal da Tarde: “o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Roberto Gurgel, condenou ontem com veemência a divisão de atribuições que deixa aos procuradores da República apenas a função de fiscais da lei, além de transferir à Procuradoria da união a função de representação judicial” (v. https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf).
Como se vê, o embrião da AGU surgiu no Anteprojeto Arinos, sob a denominação de Procuradoria-Geral da União e inserido no contexto do Governo parlamentarista. Desde essa fase inicial, buscava-se separar claramente a representação judicial da União das atribuições do Ministério Público, enfrentando pressões contrárias. A consolidação dessa proposta dependeria dos debates e das versões subsequentes dos substitutivos que marcaram os meses seguintes da Constituinte — evolução que examinaremos nos próximos artigos desta série.