Uma agenda regulatória para o vício digital

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Ansiedade, abstinência, fissura, irritação, insônia e compulsão são alguns dos desconfortos e sintomas associados ao vício em álcool, cigarro, cocaína, crack, heroína e outras drogas. Outras substâncias também vêm sendo reconhecidas como danosas à saúde por documentos de referência na psiquiatria – como o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID).

O ponto de partida de inclusão de novas categorias foram os jogos de azar e as apostas, a partir da décima revisão da CID, aprovada em 1989 e vigente a partir de 1993. Mais exemplos recentes de distúrbios neuropsicológicos são a adicção ligada aos videogames e à compulsão alimentar. O reconhecimento dessas formas de vício como patologias, em meio a debates, vem permitindo o tratamento desses comportamentos como uma questão de saúde pública. Também inaugurou importantes agendas regulatórias.

Mesmo que muitas pessoas não se identifiquem com as substâncias e atividades relacionadas acima, há cada vez mais indícios de que uma parcela significativa da população é afetada por um outro tipo de vício: a internet.

Pense no modo como você utiliza a rede, seja por meio do computador, do celular ou através de outros dispositivos, e responda com sinceridade as seguintes perguntas: você já usou a internet por mais tempo do que gostaria? Já tentou evitar o uso, mas não conseguiu? O uso lhe causou privação de sono? Você já sentiu desejo súbito de usar a internet quando estava offline? Utilizar a internet já interferiu na realização de tarefas e no cumprimento de suas obrigações? Você já continuou navegando mesmo quando isso interferiu nas suas relações pessoais ou profissionais? Você já usou seu celular em situações perigosas (enquanto dirigia, por exemplo)? Você já sentiu síndrome de abstinência quando afastado/a da rede?

É muito provável que você tenha se identificado com pelo menos alguns desses comportamentos (listados por Brignull, 2023). Feliz ou infelizmente, você não está sozinho/a. De acordo com dados do levantamento Global Overview Report, da organização Kepios, brasileiros gastam, em média, nada menos que 9 horas e 32 minutos por dia utilizando a internet. Usamos o WhatsApp mais do que americanos, franceses, australianos e canadenses juntos. Esse dado pode ser explicado pelo fato de, no Brasil, diferentemente de outros países, o WhatsApp ter se tornado também uma ferramenta profissional e um canal para comércio e serviços, muitas vezes substituindo emails ou telefonemas. Mas também gastamos duas vezes mais tempo que os americanos no Instagram – mais de 15 horas por mês. Dados da consultoria alemã Statista indicam que o Brasil é o segundo país que mais usa TikTok no mundo – atrás apenas da China, país de origem do aplicativo.

Tais dados são indicativos da falta de controle sobre o tempo que passamos conectados à internet. A facilidade com que conseguimos nos conectar, através de alguns toques em um dispositivo que está sempre ao alcance de nossas mãos, faz com que os aplicativos da internet se tornem uma companhia constante em nosso cotidiano – muitas vezes indesejada, difícil de evitar. Estamos conectados desde os primeiros minutos que acordamos até os últimos minutos antes de dormir. Estudos apontam, aliás, que o uso de dispositivos é  muitas vezes responsável por tirar o sono ou piorar sua qualidade pela exposição à luz azul ou pelo uso compulsivo.

O que chama a atenção é que por trás disso está um modelo de negócios: na economia da atenção, “enganchar” usuários virou parte do jogo. Isto é: o vício, mais do que uma externalidade negativa imposta aos usuários, se torna, de forma altamente preocupante, o objetivo estratégico para ganho econômico em algumas plataformas digitais que dependem de engajamento, sobretudo redes sociais. Dez anos atrás, Ian Bogost apelidou o BlackBerry – e seus sucessores – de “cigarro deste século”. Como o cigarro, smartphones se transformaram em um tique social que beira a compulsão, um artefato que vem mudando drasticamente o tecido social – o modo como nos relacionamos e, assim, a própria cultura, nossos hábitos e formas de socialização e mecanismos de cognição.

Isso foi agravado durante a pandemia da Covid-19 e afeta tanto adultos quanto crianças e adolescentes. No entanto, a população mais jovem é particularmente vulnerável ao uso compulsivo de plataformas digitais. Crianças e adolescentes também são os mais afetados negativamente em termos de saúde mental devido à exposição excessiva. Grandes empresas de tecnologia estão cientes de tais vulnerabilidades, diga-se e passagem. Considere, por exemplo, a pesquisa interna da Meta divulgada pelo Washington Post, em que a própria empresa reconhece os efeitos negativos do uso de Instagram em garotas adolescentes, com impactos em distúrbios de imagem, ansiedade, depressão e até mesmo suicídio.

Como o cigarro, a regulação do vício na internet pode ser bem-vinda para domar o seu uso. Ainda que hoje não tenhamos dimensão de todos os danos, a história da regulação do cigarro nos mostra que não podemos deixar que a indústria domine as discussões sobre saúde pública. De forma análoga às estratégias adotadas pelos fabricantes de cigarro nos anos 1950 e 1960, a indústria de tecnologia aposta na agenda da autorregulação para evitar responsabilização governamental.

Com a ascensão do techlash – a reação do público aos impactos negativos advindos do uso de tecnologia –, várias empresas passaram a adotar em seus produtos mecanismos que impõem ao usuário o ônus de controlar seu próprio comportamento – como os alertas de uso prolongado ou restrições de tempo de tela. Algumas dessas ferramentas podem, de fato, auxiliar os usuários a diminuírem seu uso. Mas, como parte da estratégia disseminada por toda a indústria, se mostram insuficientes, pois impingem o ônus de “controle” aos usuários, em vez de mudar os estímulos que tornam a plataforma viciante. Assim, além de ainda sentirem os danos de saúde mental impostos pelas tecnologias sobre eles, ainda por cima se culpam por não conseguirem seguir suas próprias decisões.

Mecanismos de moderação de conteúdo e de autorregulação criados por plataformas digitais, muitas vezes, estão contaminados por padrões obscuros (dark patterns), termo cunhado por Harry Brignull para definir “truques de design que te induzem a fazer coisas que você não gostaria, como comprar algo ou se inscrever em algo”. Tais técnicas exploram vieses cognitivos e atalhos mentais comuns (a heurística) para “empurrar” os usuários nas direções desejadas por seus desenvolvedores.

Para prolongar o tempo de uso de seus usuários, plataformas podem empregar técnicas como rolagens infinitas (a tela que, movida com a ponta dos dedos do usuário, nunca termina de mostrar conteúdos), defaults prejudiciais ao usuário e autoplayestratégias que podem ser categorizadas como “design viciante”. Apesar de sutis, esses truques não são banais. A literatura, cada vez mais, comprova sua eficácia em manipular usuários, bem como sua presença disseminada em sites e aplicativos.

Tentativas de regulação desse fenômeno se acumulam, a exemplo das menções em legislações na Califórnia (incluindo o California’s Age-Appropriate Design Code Act), no Colorado e em Connecticut, nos EUA, bem como o recém-aprovado Online Safety Act no Reino Unido e o novo arsenal regulatório europeu, o Digital Markets Act e o Digital Services Act.

Contudo, essa regulação é incipiente, fragmentária e esparsa, não cobrindo todos os aspectos do design viciante. É importante ressaltar, aliás, que se nem todo design viciante vem acompanhado de um padrão obscuro, a regulação deve ser específica para combater todas as formas e estratégias nocivas e enganosas utilizadas por empresas de tecnologia. Estas, como se sabe, têm engenheiros, por vezes psicólogos, dedicados a mobilizar a atenção dos usuários (um eufemismo para torná-los dependentes, em certos casos).

Para Gaia Bernstein, a autorregulação advogada pela indústria da tecnologia criou uma “armadilha da autoajuda”, similar não apenas à experiência da indústria do tabaco, como também à indústria de alimentos – principalmente dos fabricantes de ultraprocessados. Isto é: para evitar responsabilização relativa aos males de produtos danosos à saúde, a indústria de alimentos fortaleceu o discurso de responsabilidade pessoal dos consumidores, em nome da autonomia do indivíduo e da capacidade de discernimento dos consumidores, ao mesmo tempo em que aposta ostensivamente na propaganda de ultraprocessados.

Combater esse cenário nas indústrias de tabaco e alimentos exigiu – e ainda exige – uma regulação sofisticada, praticamente inexistente, que envolva múltiplos métodos combinados de forma inteligente. Isso se aplica, mutatis mutandis, à internet. Berthon, Pitt e Campbell desenvolveram uma moldura com três estratégias de políticas públicas para combater o vício digital: informar, guiar e restringir.

A primeira estratégia (informar) consiste em valorizar e promover a transparência para fornecer informações e educar consumidores, para que tenham subsídios para tomarem melhores decisões. Rótulos ou avisos obrigatórios, como os existentes em alimentos (para advertir sobre altos teores de sódio, açúcar ou gordura trans, por exemplo) e cigarros (para advertir sobre riscos de câncer ou impotência sexual, por exemplo), podem ser adaptados para ambientes digitais com a finalidade de informar tempos de uso recomendados,  consequências do uso prolongado, perigos do uso da internet em certos locais e horários, além de explicar o funcionamento de certos algoritmos, sugerir alternativas de uso e comunicar aos usuários quais são as técnicas utilizadas para prendê-los por mais tempo nas telas ou modelos de negócios (apenas para dar alguns exemplos).

A segunda estratégia (guiar) tem o potencial de modular e incentivar certos comportamentos das empresas de tecnologia, ao mesmo tempo em que empodera o usuário para que possam desativar certos mecanismos de design potencialmente prejudiciais. Por meio dessa estratégia, formuladores de políticas públicas e reguladores poderiam exigir que empresas utilizassem defaults menos viciantes (coisa que de forma experimental e ainda um tanto tímida começa a acontecer em alguns casos) e incluíssem mais “pontos de parada” ou fricção em momentos estratégicos de tomadas de decisão em suas plataformas digitais.

A terceira estratégia (restringir) visa a banir e restringir certas experiências digitais que envolvem danos mais graves. Tal estratégia pode ser implementada por meio da proibição de certos designs predatórios, de restrições de publicidade a populações vulneráveis e bloqueio de compras em determinados horários. Certamente, é uma estratégia mais rígida e intrusiva, que encontra maior resistência da indústria, mas pode ser necessária quando direitos fundamentais estão em jogo.

O desenvolvimento da internet e a proliferação de plataformas digitais trouxe e traz muitos benefícios aos usuários, empresas, governos e instituições de todo tipo. Por isso, uso de evidências, ponderação e criatividade são atributos necessários para regular o seu uso sem comprometer os ganhos coletivos que a rede propicia.

É inegável, contudo, que há uma janela de oportunidade para intervir e remediar os danos que o uso excessivo causa, especialmente em populações vulneráveis. Seja pelas mudanças trazidas no uso da internet com a pandemia, seja com o avanço de regulações de plataformas digitais, este é o momento adequado para discutirmos, também no Brasil, qual futuro digital queremos. Precisamos garantir que a nossa atenção, recurso escasso e valioso, seja direcionada aos nossos melhores interesses, e não perdida em horas inúteis de rolagem infinita.

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