A expansão das plataformas digitais nos últimos anos transformou profundamente a forma como os cidadãos acessam serviços tradicionais. Essa é uma verdade para setores díspares que vão desde transportes até investimentos.
O setor lotérico não ficou imune a esse movimento. Surgiram empresas que, atuando como mandatárias dos consumidores, intermediam apostas junto às casas lotéricas credenciadas pela Caixa Econômica Federal. São as chamadas “courriers”, termo francês que designa um mensageiro, uma pessoa encarregada de levar uma mensagem em nome de alguém.
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O modelo de negócios dessas plataformas vem sendo questionado judicialmente pela própria Caixa, sob a ótica do monopólio estatal garantido em relação a jogos lotéricos. Mas enquanto no poder Judiciário o tema ainda é recente e não há uma jurisprudência consolidada, com decisões contra e a favor da Caixa, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já decidiu de forma favorável às empresas e, mais importante, com esclarecimentos essenciais que reforçam a legitimidade dessa atividade.
Na prática, o usuário, mediante contrato de mandato (art. 653 do Código Civil Brasileiro), outorga poderes à plataforma para que esta, em seu nome, efetive junto à Caixa as apostas indicadas, incluindo aí o serviço de megabolões. Ou seja, não há exploração direta de jogo lotérico, mas simples mandato outorgado pelo consumidor, em troca de um serviço que leva comodidade e tecnologia ao cliente.
Nessa linha, já há parecer inclusive do professor e jurista Ingo Wolfgang Sarlet, que reforça essa compreensão. Segundo ele, a plataforma intermediadora “não sorteia números, não faz correr sua própria loteria, e não paga prêmios”. “Apenas atua, em nome de seu cliente, perante a própria Caixa, realizando os jogos lotéricos solicitados pelo cliente na rede lotérica federal”.
Assim, a intermediação não retira da Caixa a exploração da loteria, nem compromete a destinação social dos recursos arrecadados. Pelo contrário, contribui para ampliar a base de apostadores.
No âmbito administrativo, o Cade também já se debruçou sobre a matéria. No julgamento do Recurso Voluntário 08700.005885/2023-52, em fevereiro deste ano, consignou-se que existem dois mercados distintos: o primário, de exploração das loterias, monopólio legal da Caixa; e o secundário, de prestação de serviços de intermediação online, onde atuam as plataformas digitais.
A Nota Técnica 16/2025, foi ainda mais clara ao registrar que, segundo manifestação do Ministério da Fazenda, por meio da Secretaria de Prêmios e Apostas, é patente a legitimidade do negócio. A secretaria atestou ao Cade que “não existe regulação ou proibição expressa para a atividade de intermediação explorada pelas plataformas na captação de apostas” e que, na prática, “as plataformas não vendem bilhetes próprios, mas efetuam os registros nas Unidades Lotéricas autorizadas pela CEF”.
Essa diferenciação é crucial: a Caixa mantém intacto seu monopólio sobre a criação e a venda de produtos lotéricos; já as plataformas oferecem conveniência e serviços acessórios — como organização de bolões, apostas combinadas e facilidades de pagamento — que não competem com a essência do serviço público.
A Constituição Federal assegura, no artigo 170, o livre exercício de atividades econômicas, salvo nos casos em que a lei dispuser em contrário. Como bem observou o jurista Ingo Wolfgang Sarlet, “não havendo lei que proíba a atividade de intermediação lotérica – e não há –, ela pode ser livremente desenvolvida”.
Trata-se, portanto, de atividade privada legítima, sujeita apenas às normas gerais de direito do consumidor, responsabilidade civil e transparência contratual. Impedi-la equivaleria a restringir, sem base legal, a livre iniciativa e a livre concorrência.
A intermediação digital de apostas lotéricas não é uma afronta ao monopólio legal da Caixa, mas um mecanismo moderno de aproximação entre o consumidor e a rede lotérica oficial. Todo o valor da aposta continua destinado à Caixa, preservando-se a finalidade social das loterias.
Novamente, Ingo Sarlet esclarece que “os serviços oferecidos pela consulente são benéficos à Caixa, visto que atraem apostadores que, sem os serviços de courrier, não apostariam”. “É o caso, por exemplo, daqueles que, nada obstante queiram apostar, não estão dispostos a despender os R$ 30 de aposta mínima exigida pela Loteria Online da Caixa, e nem a se deslocar, pessoalmente, a uma agência lotérica”, explica.
Um estudo da FGV, publicado em 2023, evidenciou os inúmeros benefícios econômicos decorrentes da intermediação digital de apostas. Segundo o levantamento, a presença desses serviços gerou um aumento médio de R$ 556 milhões anuais na arrecadação da Caixa Econômica Federal ao longo de dez anos, chegando a um impacto de aproximadamente R$ 870 milhões somente em 2021. Na prática, essa arrecadação não beneficiou só a Caixa, mas também as áreas sociais que recebem verbas lotéricas, reforçando que o modelo não diminui, mas amplia as receitas do monopólio estatal.
O relatório da FGV também aponta que, em um cenário de regulamentação mais clara e positiva, o impacto da intermediação poderia se aproximar de R$ 1 bilhão anuais, podendo alcançar até R$ 1,9 bilhão caso fossem liberados mecanismos de divulgação hoje bloqueados. Ou seja, trata-se de um modelo capaz de atrair novos apostadores, ampliar a base de arrecadação e modernizar o setor, com ganhos não apenas para as plataformas privadas, mas, sobretudo, para a Caixa e para a sociedade brasileira como um todo.
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O que as plataformas agregam é conveniência, inovação e inclusão de apostadores que, de outro modo, não participariam. Criminalizar ou tentar sufocar esse modelo — como o próprio Cade já alertou ao abrir processo administrativo por práticas anticompetitivas — é desconsiderar os princípios constitucionais da livre iniciativa e da concorrência.
Aos olhos do Direito e da economia, portanto, a atividade é legítima e merece ser reconhecida como tal. Assim, em alguma medida, o dilema entre o monopólio estatal, sua eficiência ou ineficiência, que já teve inúmeras repercussões ao longo dos últimos anos no país, ganha um novo capítulo no caso da Caixa e a atividade das intermediadoras, focada em tecnologia e comodidade.
O caso mais notável de dilema semelhante foi sobre o monopólio dos Correios nos serviços postais e a expansão do ecommerce que veio justamente em seguida. E a lógica neste caso, como em tantos outros setores, tem sido de abertura do mercado e o ingresso de novos players – ainda que o monopólio seja mantido para as atividades centrais. Os resultados deixam claro que mais comodidades, mais serviços e mais players trazem ganhos à União e aos consumidores.