A partir de agosto deste ano, entrou finalmente em vigor a Resolução 591/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece os requisitos mínimos e o procedimento para o julgamento de processos em ambiente eletrônico no âmbito do Judiciário. Essa norma representa uma mudança substancial na estrutura da deliberação colegiada dos tribunais brasileiros, ao instituir um modelo de julgamento totalmente virtual e assíncrono, sem qualquer interação presencial ou simultânea entre os julgadores.
O plenário virtual, inicialmente concebido pelo Supremo Tribunal Federal, expandiu-se significativamente, tanto no âmbito da própria corte quanto em outros tribunais brasileiros. Contudo, sua regulamentação passou a ser responsabilidade de cada tribunal, de modo que veio em boa hora a referida resolução do CNJ que definem uma estrutura mínima para esse modelo deliberativo.
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Diante desse novo paradigma, a dogmática jurídica tem o desafio de compreender seu funcionamento e delinear um modelo deliberativo que observe as garantias do devido processo legal, com especial atenção ao fortalecimento da colegialidade nesse desenho procedimental.
Antes de qualquer análise crítica, é fundamental entender o modelo instituído pela Resolução do CNJ. Como regra, todos os julgamentos colegiados passarão a ser realizados, a critério do relator, em ambiente eletrônico (art. 2º), devendo ser públicos, com acesso em tempo real e ampla disponibilidade às partes e à sociedade (art. 3º). Assim como no julgamento presencial, a inclusão do processo em pauta deverá ser precedida de intimação das partes com antecedência mínima de cinco dias, conforme determina o art. 935 do CPC (art. 4º).
A questão que merece maior destaque é a disciplinada no art. 5º da Resolução, que estabelece a dinâmica do julgamento em ambiente virtual. De acordo com o caput do dispositivo, caberá ao relator inserir previamente o relatório e seu voto no sistema, antes do início da sessão de julgamento.
A partir desse momento, os demais integrantes do colegiado terão o prazo de seis dias para se manifestar, também de forma pública, com votos que serão disponibilizados em tempo real ao longo da própria sessão (§ 1º). O § 6º, por sua vez, dispõe que os votos serão computados segundo a ordem cronológica de sua inserção no sistema.
À primeira vista, esse modelo é digno de elogios por assegurar maior transparência e conferir efetiva publicidade ao processo decisório, em observância ao art. 93, inciso IX, da Constituição, que garante a ampla publicidade dos julgamentos proferidos pelos órgãos do Judiciário.
Isso representa um avanço em relação à regulamentação dispersa até então vigente nos tribunais brasileiros, onde, em muitos casos, os julgamentos virtuais ocorrem sem que as partes tenham conhecimento prévio ou acesso imediato aos votos, muitas vezes disponibilizados apenas dias após o encerramento da sessão.
No Brasil, adota-se o modelo seriatim de deliberação colegiada, segundo o qual o resultado do julgamento é formado pela reunião dos votos individuais de cada julgador. Não por acaso, o voto vencido deve constar obrigatoriamente do acórdão (art. 941, § 3º, do CPC). Não se adota, portanto, o modelo per curiam, em que o resultado da decisão do colegiado é apresentado por meio de uma manifestação única do tribunal[1].
Partindo desse modelo de agregação de votos individuais, é necessário atentar-se à forma como se estrutura a deliberação colegiada nos julgamentos virtuais, pois a dinâmica de construção dos votos difere daquela observada nos julgamentos presenciais. Enquanto o primeiro, por seu caráter síncrono, é estruturado de maneira sequencial e progressiva, com cada julgador proferindo seu voto em resposta ao anterior, permitindo, inclusive, o diálogo entre as posições, o segundo ocorre de forma simultânea, sem uma ordem predefinida. No julgamento virtual assíncrono, em razão da ausência de interação em tempo real, não existe uma sequência deliberativa entre os julgadores, o que altera profundamente a lógica tradicional de formação colegiada e gradativa da decisão.
Nesse contexto, merece especial atenção o tratamento conferido ao voto divergente. Nos julgamentos presenciais, é comum a interrupção da sequência deliberativa quando suscitada preliminar recursal por um dos julgadores ou quando ocorre uma divergência em relação ao mérito do recurso.
No primeiro caso, a preliminar funciona como verdadeira questão de ordem, que deve ser apreciada pelo colegiado antes da continuidade do julgamento de mérito, conforme dispõe o art. 938, caput, do CPC.
No segundo, é frequente que o voto divergente interrompa a votação: o relator pode solicitar o retorno dos autos para reexame do caso, ou o julgador que ainda não votou pode pedir vista para proferir o voto de desempate. Isso ocorre, essencialmente, porque no ambiente presencial os julgadores tomam conhecimento imediato da divergência instaurada, o que permite a reação deliberativa em tempo real.
No ambiente virtual, contudo, essa dinâmica deliberativa é profundamente alterada em razão do caráter simultâneo e assíncrono do julgamento. A lógica sequencial e interativa, típica das sessões presenciais, dá lugar a manifestações individuais que ocorrem sem qualquer ordem ou interação direta entre os julgadores. Um desembargador ou ministro pode lançar seu voto logo no início da sessão, no segundo dia, enquanto outro pode fazê-lo apenas no sexto e último dia do prazo.
Ademais, aquele que vota logo após o relator no ambiente virtual não necessariamente está exercendo o papel de vogal, como tradicionalmente ocorre nas sessões presenciais. Assim, diante da simultaneidade da votação, é perfeitamente possível que um voto divergente lançado por um dos integrantes do colegiado passe despercebido pelos demais, comprometendo a dinâmica da deliberação colegiada[2].
O ideal seria que, diante da identificação de um voto divergente, o sistema eletrônico comunicasse automaticamente os demais membros do colegiado, exigindo manifestação expressa sobre o ponto controvertido, seja para acompanhá-lo, seja para rejeitá-lo. Tal mecanismo garantiria que a divergência fosse não só visualizada, mas efetivamente enfrentada pelos julgadores, promovendo uma deliberação colegiada compatível com o princípio do contraditório e com o dever de fundamentação das decisões judiciais. Muito embora a Resolução do CNJ preveja expressamente, em seu art. 6º, inciso IV, a possibilidade de o julgador acompanhar voto divergente, o risco está justamente na dificuldade de identificação dessa divergência.
Essa questão já seria problemática por si só se continuarmos aceitando a ideia de que a votação colegiada se limita à formação do resultado final constante do dispositivo, como ocorre usualmente no julgamento de recursos ordinários pelos tribunais locais. No entanto, a situação se torna ainda mais grave quando se observa que, nos julgamentos colegiados com potencial de formação de precedentes – especialmente nas Cortes Superiores –, em que é essencial identificar as convergências e divergências entre os fundamentos adotados nos votos individuais, tarefa indispensável à adequada construção da ratio decidendi[3].
A confusão instaurada na deliberação colegiada quanto à existência de divergência, à sua exata extensão, bem como à identificação de quais julgadores a acompanharam ou rejeitaram, compromete diretamente a delimitação da ratio decidendi e, por consequência, enfraquece a eficácia vinculante do precedente. Em última instância, tal cenário vulnera os mandamentos de coerência e integridade da jurisprudência previstos no art. 926 do CPC.
Portanto, no contexto específico do voto divergente, mostra-se indispensável que o ambiente eletrônico assegure condições efetivas para o enfrentamento de opiniões contrárias no âmbito do julgamento colegiado. Tal exigência decorre da própria natureza desse modelo decisório, que se estrutura sobre a premissa da pluralidade de perspectivas sobre a matéria em debate como um elemento qualificador da deliberação jurisdicional.
Nesse sentido, a colegialidade típica do procedimento recursal reforça a legitimidade e a densidade argumentativa da decisão judicial, distinguindo-a daquela proferida em primeiro grau, na qual o convencimento resulta da análise individual de um único magistrado[4].
A divergência, assim, quando existente, assume papel essencial e deve ser enfrentada de modo pleno pelo órgão colegiado. Para tanto, é necessário estruturar um desenho procedimental no ambiente virtual que promova e fortaleça a colegialidade em detrimento do individualismo do voto solitário de cada julgar. Caso contrário, corre-se o risco de se reduzir o julgamento virtual ao voto do relator, com mera adesão dos demais membros do colegiado.
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Com a iminente vigência da Resolução do CNJ, os julgamentos virtuais se consolidam como uma realidade incontornável no sistema de Justiça brasileiro. A análise aqui empreendida concentrou-se, de modo particular, no tratamento conferido ao voto divergente, sem prejuízo do reconhecimento de que outras questões igualmente relevantes demandam reflexão – como a já amplamente debatida possibilidade de sustentação oral, seja em tempo real ou mediante gravação.
É fundamental que os principais atores institucionais, bem como a doutrina, mantenham-se atentos e comprometidos com o aperfeiçoamento contínuo desse novo modelo deliberativo nos tribunais, de modo a assegurar sua plena compatibilidade com o devido processo legal.
[1] Quanto às distinções entre esses dois modelos de deliberação colegiada, VIEIRA, Isabelle Almeida. Repensando o processo decisório colegiado do Supremo Tribunal Federal: uma crítica ao desenho deliberativo e ao modelo seriatim. Londrina: Thoth, 2022, p. 87-148.
[2] Analisando o problema no contexto do Plenário Virtual do STF, PEREIRA, Paula Pessoa. Engrenagens do desempenho deliberativo do STF nos julgamentos virtuais. Jota, 19 nov. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/engrenagens-do-desempenho-deliberativo-do-stf-nos-julgamentos-virtuais#_ftnref5.
[3] Para uma análise da relação entre deliberação colegiada e formação de precedentes, MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 99-152.
[4] Sobre as razões que fundamentam a colegialidade, SOKAL, Guilherme Jales. O julgamento colegiado nos tribunais: procedimento recursal, colegialidade e garantias fundamentais do processo. São Paulo: Método, 2012, p. 81-108.