No último dia 20 de agosto, o jornal Folha de S.Paulo moveu ação judicial contra a OpenAI por violação de direitos autorais e concorrência desleal, dentre outras alegações[1]. Com isso, inaugura no Judiciário nacional a discussão que já está colocada em outros países, como relatado na coluna de abril.
De fato, são diferentes empresas que buscam judicialmente reclamar violação de direitos autorais por parte de desenvolvedoras de ferramentas de IA. Alguns desses processos são movidos por empresas jornalísticas – e a ação do The New York Times foi a primeira nos EUA, em dezembro de 2023.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
A questão posta e o direito reclamado aqui e alhures são semelhantes, como aprofundaremos adiante. Assim, este texto (que não foi elaborado por IA) traça paralelo entre as petições iniciais de dois casos representativos da disputa entre jornalismo e inteligência artificial, destacando diferenças. Em comum – e já como spoiler – ainda não há desfecho para nenhum dos casos.
Proximidade nas alegações e no direito invocado
NYT e Folha moveram ações contra a OpenAI por entenderem que a empresa teria infringido direitos autorais na utilização de seu conteúdo digital para treinamento e aprimoramento do ChatGPT. Além disso, alegam que a ferramenta compete de forma desleal com seus produtos, pois disponibilizaria conteúdo jornalístico para seus usuários, reproduzindo e/ou distribuindo outputs muito próximos do texto original. Esse uso não autorizado (e sem remuneração) seria ilegal e prejudicaria comercialmente os dois títulos.
Ambas são empresas jornalísticas centenárias, com milhares de assinantes. Em suas petições, há uma retrospectiva das mudanças do mercado jornalístico e o impacto da digitalização em suas atividades.
Os jornais alegam ter custos altos: a produção de notícias não demanda apenas a remuneração de repórteres, editores, designers, fotógrafos e colunistas. A apuração de fatos, deslocamentos e viagens, e todos os recursos para a checagem das informações exigem investimentos. Somam-se infraestrutura, imóveis, maquinário e equipamentos digitais.
Argumentam tratar-se de uma grande operação, necessária para a manutenção da independência editorial e da qualidade do jornalismo praticado. O NYT vai além e afirma que “produzir o jornalismo do Times é um esforço criativo e eminentemente humano”.
Nas duas publicações, adotou-se a remuneração dos leitores digitais, via assinaturas e barreiras de acesso (paywalls), que estariam sendo removidas pela OpenAI para acessar seu conteúdo online[2]. Folha e NYT também lucram com receitas publicitárias, potencializadas pelo acesso livre permitido a alguns conteúdos. Este é fundamental para geração e manutenção de tráfego direto de audiência aos seus sites, algo hoje garantido pelos sistemas de buscas, que trazem pequeno trecho da reportagem e link de direcionamento à fonte – o que não ocorre com o ChatGPT.
Ainda, as empresas reconhecem obter receitas por licenças que permitem a terceiros explorarem seu conteúdo. O uso para além destas licenças ou das assinaturas, alegam, não é permitido. Ao entenderem que a lei de direitos autorais lhes garante controle[3] do que produzem, qualquer uso não autorizado seria ilícito. Assim, argumentam que tal impedimento consta dos termos e condições aplicáveis aos usuários digitais dos jornais e que a OpenAI deliberadamente decidiu por atuar sem esse tipo de licença, negando contato para negociação.
É evidente que as petições são integralmente baseadas em argumentos de titulares de propriedade intelectual. Tudo que se estuda e lê sobre essa matéria está ali. Quanto às alegações de violações à lei de direitos autorais, é curioso que as petições mencionam as respectivas Constituições Federais aplicáveis: direitos autorais são constitucionalmente garantidos aos autores. Para a Folha, tais direitos seriam fundamentais no Brasil[4].
Para as autoras, a violação dos direitos autorais estaria comprovada por exemplos que indicariam utilização do conteúdo jornalístico para treinamento e aprendizagem da máquina. As peças listam os sites que teriam virado “fonte” do treinamento antes mesmo de o ChatGPT ter sido aberto ao público. As evidências apresentadas são bastante semelhantes em ambas as peças. Mas ao contrário do NYT, a Folha requer a destruição dos modelos que foram treinados com seu conteúdo.
As petições iniciais se assemelham também na apresentação de provas para sustentar que o ChatGPT produziria respostas aos seus usuários muito próximas ao conteúdo original dos jornais. As autoras trazem imagens de prompts dados ao ChatGPT e seus outputs, comparando-os com textos originais. Há também utilização de determinados prompts específicos, que retornariam respostas praticamente idênticas. Tentam provar que seria possível requerer ao ChatGPT imitação do estilo editorial dos jornais, mesmo que para textos novos.
Expressamente argumentam que dependem da proteção de direitos autorais, e, portanto, da sua propriedade intelectual para existirem. Com base na exclusividade permitida pela lei autoral, reconhece-se que o negócio jornalístico subsiste[5]. Ao mesmo tempo, e muito curiosamente, os dois jornais trazem argumentos de interesse público à proteção dos seus direitos autorais – algo que normalmente é invocado por aqueles que defendem a flexibilização da propriedade intelectual.
Neste caso, não é o que se percebe. As duas peças traçam paralelo entre jornalismo e democracia com muita ênfase. Em suma, sustentam haver grande interesse social na proteção da atividade jornalística independente[6]. Sublinham que histórias de interesse da sociedade publicadas ao longo dos anos não teriam sido conhecidas da população caso não existissem o NYT e a Folha.
Logo, invocam que a propriedade intelectual dos jornais teria a “finalidade” maior de financiar jornalismo independente e de qualidade[7]. Sem a PI, argumentam que haveria prejuízo não apenas aos titulares, mas a toda a sociedade.
Juntamente com a defesa da propriedade intelectual, os jornais atacam uma suposta falta de ética e moralidade na atuação da OpenAI. O ChatGPT, alegam, ofereceria concorrência desleal e injusta contra as empresas jornalísticas, dado que captura os investimentos substanciais feitos para atuarem sem qualquer custo ou remuneração paga aos jornais[8].
Em outras palavras, invocam o free ridding pela OpenAI, que estaria “pegando carona” no conteúdo digital para melhorar sua ferramenta e oferecer respostas capazes de substituir os originais – trazendo assim, mais valor ao ChatGPT.
Nas duas petições, notam as autoras que a OpenAI já não é mais empresa sem fins lucrativos (como constituída no princípio). Mais: o ChatGPT se popularizou, garantindo à OpenAI reconhecimento como uma das empresas mais valiosas do mundo.
As diferenças que chamam atenção
Como notado, são muitas as semelhanças entre as petições apresentadas pelo New York Times e pela Folha de S.Paulo. Dentre as diferenças, algumas são relacionadas aos distintos sistemas jurídicos envolvidos. Mas não só. Há também distinções relacionadas ao próprio negócio de cada jornal e ao mercado, nos EUA e no Brasil.
Em termos jurídicos, existem diferenças entre as leis de direitos autorais dos EUA e do Brasil. Os dois sistemas se fundam em “premissas” distintas: enquanto os EUA têm direito autoral afiliado na tradição do commonlaw inglês (copyrights), o Brasil segue a linha da Europa continental, liderada pela França.
O tratamento de direitos morais, como exemplo, é muito diferente entre os dois regimes – mesmo que em nenhuma das petições isso tenha sido invocado. Também se distinguem as permissões legais para uso de obras protegidas sem autorização do titular. Nos EUA há o fair use: ou seja, reconhece-se que sob determinados critérios e condições seria possível o uso justo por terceiros de obra protegida. No Brasil, as limitações e exceções à proteção autoral são previstas textualmente em lei ou tratados internacionais, com muito mais restrições.
Há também outra diferença sensível entre Brasil e EUA: enquanto aqui o registro de obras não é necessário, lá o registro junto ao Escritório Americano de Direitos Autorais (USCO) é imprescindível para total proteção. Em sua petição, o NYT afirma que detém mais de 3 milhões de registros de suas versões impressas no USCO.
Já em termos de concorrência desleal, os sistemas americano e brasileiros se aproximam razoavelmente. Mesmo assim se percebe que a Folha é muito mais contundente nas alegações de concorrência desleal do que o NYT. Isso seja, talvez, porque questões processuais. A concorrência desleal é regida por artigos 195 e 208 a 210 da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), que consta como uma das leis cuja apreciação de processos é reservada, em São Paulo, às varas empresariais.
A mesma possibilidade não é aberta à Lei de Direitos Autorais. Portanto, se houvesse apenas alegações relacionadas a violação autoral (e outros temas do Código Civil trazidos pela Folha), a distribuição seria a varas distintas, mais morosas e sem especialização em temas empresariais[9].
Para além dos pontos jurídicos, vale notar alguns argumentos trazidos pelo NYT que não têm paralelo na ação da Folha pela diferença como atuam, e percebem a sua atuação empresarial. Primeiramente, o NYT alega que a OpenAI não apenas infringe seus direitos autorais como também contribui para que os usuários do ChatGPT violem a lei.
Não havendo qualquer limitação à utilização do ChatGPT, a OpenAI torna possível pela ferramenta e assiste ao usuário na utilização indevida dos conteúdos protegidos. Da mesma forma, invoca o NYT que ao remover o paywall, a OpenAI violaria termos específicos da lei americana Digital Millennium Copyright Act, que entrou em vigor em 2000. A lei brasileira, redigida em tempos pré-internet, não tem tais previsões.
Juntamente com violação de direitos autorais e concorrência desleal, o NYT alega que a OpenAI infringe suas marcas. O prejuízo se daria pela citação indireta do jornal (sem autorização) como fonte de informações para o output. Mas para além disso, ao mencionar casos de alucinação pelo ChatGPT, o NYT afirma que haveria diminuição na percepção do bom valor da marca NYT.
Em outras palavras, quando o ChatGPT traz ao usuário outputs que não correspondem ao conteúdo do NYT, seja por serem falsos, inverídicos ou inexistentes, a marca do jornal estaria prejudicada, pois o usuário não seria capaz de identificar tais alucinações e acreditaria serem aqueles conteúdos do NYT[10].
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Finalmente, vale mencionar que o NYT traz exemplos de situações nas quais concede licenças para fins de pesquisa acadêmica, usos educacionais ou registros históricos. Seja pela digitalização do acervo, ou pelo acesso conferido por API, ou ainda por integrar o Copyright Clearance Center, o NYT apresenta situações nas quais permite uso de seu conteúdo por terceiros para fins não comerciais, enfatizando que estas seriam possibilidades abertas a quem busca no seu conteúdo utilização sem intuito lucrativo. No Brasil, essa é uma discussão que há muito não prospera como seria desejável.
O outro lado
Este texto foca nos argumentos de ataque do New York Times e da Folha de S.Paulo e, como alertamos, os processos ainda não estão concluídos. No processo brasileiro, houve recentíssima decisão negativa ao pedido de tutela liminar com argumentação pela OpenAI de que não estariam verificados os requisitos processuais para tanto. Além disso houve determinação de que o processo correrá em segredo de justiça para proteção do segredo industrial da OpenAI, como relatado também pelo JOTA[11].
Nos EUA, em outros processos que tratam de temas semelhantes – violação de direitos autorais por ferramentas de IA – são poucas as decisões de 1ª instância existentes até o momento. Nestas, o Judiciário tem demonstrado favorecer a interpretação de que estaria configurado fair use no uso de obras para treinamento da IA. Não temos posição ainda sobre a alegação de concorrência desleal.
No Brasil, seria muito interessante acompanhar o processo e entender seus desdobramentos, uma vez que não temos em nossa legislação instituto semelhante ao fair use.
Em alta | agosto.25
- Brasil. O INPI abriu consulta pública para obter comentários e sugestões para sua proposta de Diretrizes de Exames de Pedidos de Patentes relacionados à Inteligência Artificial. Ainda que por limitação da Lei de Propriedade Industrial, uma patente não poderá cobrir invenção gerada de forma autônoma por ferramenta de IA, admite-se patenteabilidade em invenções que contaram com assistência de IA ou são baseadas em IA. A Consulta Pública 3 está aberta até o dia 17 de outubro. Mais informações disponíveis no site do INPI[12].
- Congresso Nacional. O PL 143/19, que visa alterar a Lei de Responsabilidade Fiscal para impedir contingenciamento dos recursos destinados ao INPI, foi aprovado na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação e Informática do Senado e segue para apreciação na Comissão de Assuntos Econômicos. A medida é defendida pelo INPI, pois garantiria que recursos destinados ao instituto seriam de fato enviados pelo governo federal, permitindo mais previsibilidade nas ações.
- EUA. Encerrado o prazo para submissão de contribuições à investigação aberta pelo USTR (escritório de comércio americano) contra o Brasil. Propriedade intelectual consta na lista como ponto de proteção insatisfatória, o que traria prejuízos e barreiras às empresas americanas. Em evidência estavam o longo prazo para concessão de patentes pelo INPI e áreas de comércio de produtos contrafeitos, como a rua 25 de Março em São Paulo. Ao todo foram 258 submissões, de empresas e entidades brasileiras e americanas. Todos os documentos estão disponíveis ao público no site do USTR[13].
- São Paulo. A Abramus, a ABDA e o IASP organizaram na Faculdade de Direito da USP o seminário “Direito Autoral em Tempos de Inteligência Artificial”. Participaram do evento representantes de diferentes classes artísticas, do Ministério da Cultura, do Judiciário e de diferentes faculdades. Os painéis se propuseram a discutir impactos na legislação de direito autoral com novas ferramentas de IA, bem como comentar projetos de lei em tramitação, como o PL 2338. A íntegra do evento pode ser acessada online[14].
- Brasil. O Reglab, think thank de estratégia e regulação, publicou mapeamento de legislações de direitos autorais de 50 países com foco na identificação de exceções para mineração de dados. O documento, disponível online, compara os sistemas jurídicos com vistas a traçar paralelo entre tais leis e competitividade de seus países para mercado de inteligência artificial[15].
[1] O processo corre na 3ª Vara Empresarial de São Paulo sob o número 1107237-96.2025.8.26.0100. Os primeiros dias do processo foram reportados por Grasielle Castro para o JOTA em: https://www.jota.info/justica/folha-processa-openai-para-que-reportagens-nao-sejam-usadas-pelo-chatgpt
[2] O NYT adotou o paywall em 2011 e a Folha passou a usar da tecnologia em 2012.
[3] Argumenta a Folha que se ela “não puder preservar e controlar o acesso e a distribuição do seu conteúdo de modo a tornar a sua exploração rentável, todo o sistema da produção independente de conteúdo jornalístico nacional relevante poderá colapsar” (pág. 9).
[4] Conforme colocado: “A leitura sistemática desses dispositivos (da Constituição Federal) evidencia que a exploração econômica do conteúdo jornalístico constitui exercício legítimo de um direito fundamental, essencial à sustentabilidade da imprensa profissional e à manutenção de um ecossistema informativo plural, autônomo e financeiramente viável” (pág. 3).
[5] Afirma o NYT, em tradução livre: “O Times depende de seus direitos exclusivos de reprodução, adaptação, publicação e performance, e disponibilização garantidos pela lei de direitos autorais para resistir…” (pág.14).
[6] Afirma o NYT: “O jornalismo independente é vital para a nossa economia” (tradução livre), enquanto a Folha diz: “O jornalismo é essencial à democracia”.
[7] A Folha sustenta que “A preservação do conteúdo jornalístico e de seu uso exclusivo pelos titulares é um elemento estruturante da própria liberdade de imprensa, não se tratando apenas de uma questão patrimonial, mas de garantia democrática à existência de veículos de comunicação independentes e robustos” (pág. 6), enquanto o NYT afirma “A proteção da propriedade intelectual do Times é crítica para a contínua habilidade de financiar jornalismo de qualidade global no interesse público. Se o Times e seus pares não puderem controlar o uso de seu conteúdo, sua habilidade de monetizar tal conteúdo será prejudicada. Menos jornalismo será produzido, e o custo para a sociedade será imenso”.
[8] A Folha é expressa nesse ponto alegando: “O réu treinou e explora sua ferramenta de IA sem qualquer custo, porque lhe basta coletar as informações no site da autora (e no repertório de muitos autores, artistas, músicos, veículos de comunicação e sites em geral), para gerar as respostas aos usuários e manter interação com eles. Assim, aquilo que a autora faz com altíssimos gastos e encargos, gerados obviamente pela contratação e manutenção das mais variadas equipes e infraestrutura, o réu faz sem esses custos” (pág. 24).
[9] A 3ª Vara Empresarial, na qual corre o processo da Folha, foi recém-inaugurada. Há 20 anos, o Tribunal de Justiça de São Paulo iniciou a especialização de certas temáticas empresariais, o que posteriormente foi seguido por diferentes estados. Mais informações disponíveis no site do TJSP: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=106931
[10] Conforme alegado pelo NYT em tradução livre: “Os réus estão cientes de que seus produtos ChatGPT produzem conteúdo incorreto que são falsamente atribuídos ao NYT e ainda sim continuam a lucrar pela criação e falsa atribuição de conteúdo ao Times”.
[11] Reportagem de Mariana Larrubia disponível em: https://www.jota.info/justica/juiz-atende-openai-e-determina-segredo-de-justica-em-processo-da-folha-contra-chatgpt
[12] Informações disponíveis em: Consultas Públicas — Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
[13] Acesso às submissões disponíveis em inglês pelo site: https://comments.ustr.gov/s/docket?docketNumber=USTR-2025-0043
[14] Disponível em: https://www.youtube.com/@AbramusOficial/featured
[15] O mapeamento pode ser acessado em: https://reglab.com.br/mapeamento-global-de-leis-de-direitos-autorais-e-excecoes-para-mineracao-de-dados/