O Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania instituíram, por meio da portaria interministerial 18/2024, o Cadastro de Empregadores em Ajustamento de Conduta (CEAC), um documento paralelo à notória Lista Suja do trabalho escravo.
A criação deste cadastro paralelo se insere em um contexto de disputas recorrentes sobre o alcance e a efetividade da Lista Suja, instrumento que desde 2003 tem sido simultaneamente celebrado pela comunidade internacional como política pública de vanguarda e atacado por setores econômicos que veem na transparência uma ameaça aos seus modelos de negócio baseados na exploração extrema da mão de obra.
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Enquanto a Lista Suja promove a dignidade da pessoa humana e concretiza a lei de acesso à informação (ADPF 509), a lista paralela invisibiliza empregadores que exploraram a escravidão por meio de um acordo com a União que retira o nome deles da Lista Suja, colocando-os em documento apartado, com acesso distinto do tradicional e sem a mesma visibilidade.
Essa investida do MTE e do MDHC contra a Lista Suja (e contra sua função de transparência) guarda semelhança com o distópico Ministério da Verdade descrito por George Orwell no romance 1984. Na obra, o ministério tinha a tarefa da “falsificação cotidiana do passado”, moldando os fatos aos interesses dos detentores do poder, termos que facilmente se aplicam ao MDHC e ao MTE, que reescrevem a história dos exploradores do trabalho escravo, retirando, senão impedindo, o seu ingresso na Lista Suja e assegurando-lhes invisibilidade.[1]
Não por outro motivo a Comissão Pastoral da Terra, histórica defensora dos trabalhadores rurais brasileiros, no dia 07/07/2025 publicou nota alertando para o risco deste novo cadastro se tornar uma verdadeira “lista limpa”, que garante invisibilidade aos exploradores e enfraquece o propósito principal e histórico da Lista Suja: garantir a transparência e o controle social.[2]
O termo “lista limpa”, longe de ser mero jogo de palavras, expõe a perversidade de um mecanismo que permite aos empregadores flagrados em práticas escravagistas escolherem entre diferentes caminhos jurídicos, criando uma espécie de “lavanderia” reputacional institucionalizada.
O que torna particularmente grave esta nova configuração é a institucionalização de uma dualidade que subverte a própria lógica da transparência. Ao permitir que empregadores flagrados em condições análogas à escravidão possam migrar para um cadastro alternativo, em documento separado e sem a mesma visibilidade da Lista Suja, cria-se uma distinção artificial entre infratores, apagando o histórico de exploração daqueles que detém poder econômico suficiente para celebrar acordo com a União.
A possibilidade de “lavagem” reputacional através da migração entre listas fragiliza o caráter dissuasório da política pública e envia mensagem preocupante ao mercado: é possível negociar a visibilidade das violações aos direitos humanos.
A criação da “lista limpa” também revela uma compreensão equivocada sobre a natureza da transparência no combate ao trabalho escravo. A Lista Suja nunca foi concebida como instrumento punitivo, mas como mecanismo de publicidade que permite à sociedade exercer controle social sobre as práticas empresariais. Ao criar uma via alternativa que dilui esta transparência, compromete-se a própria razão de ser do instrumento.
Um outro aspecto arbitrário desta arquitetura reside na possibilidade de interferência política direta do Ministro do Trabalho no processo de celebração dos acordos. Esta previsão, contida no §7º do artigo 5º da Portaria, estabelece que propostas finais de acordo devem ser submetidas ao Ministro, criando um canal institucionalizado para que considerações políticas contaminem decisões que deveriam ser estritamente técnicas e jurídicas.
Esta interferência não é acidental. Ela reflete uma tentativa recorrente de submeter a aplicação da lei às pressões políticas e econômicas do momento. A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal já havia reconhecido, quando da análise da ADPF 489, que medidas administrativas que condicionam a eficácia da Lista Suja à vontade individual de Ministro de Estado constituem limitação inadmissível às ações de fiscalização e violam os princípios republicanos de impessoalidade e moralidade administrativa.
A preservação da integridade da Lista Suja não é questão de menor importância. Trata-se de manter a coerência da política pública que lida com uma das mais graves violações aos direitos humanos. Cada trabalhador resgatado em condições análogas à escravidão representa não apenas uma estatística, mas uma vida humana submetida a condições degradantes que afrontam os valores mais básicos de nossa civilização.
O momento exige ação firme dos atores institucionais envolvidos nesta política, em nome da preservação de conquistas históricas. A unidade na luta contra o trabalho escravo é uma necessidade estratégica.
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A solução não passa pela criação de rotas alternativas que diluam a força da política pública, mas pelo fortalecimento dos mecanismos existentes e pela garantia de que sua aplicação permaneça técnica, impessoal e imune a pressões políticas ou econômicas. A Lista Suja deve permanecer una, assim como deve ser una a reprovação social às práticas escravagistas, independentemente dos acordos que seus perpetradores estejam dispostos a celebrar.
O combate ao trabalho escravo no Brasil encontra-se em encruzilhada histórica. O caminho escolhido determinará se manteremos a coerência e efetividade de política pública reconhecida internacionalmente ou se cederemos a pressões que buscam flexibilizar a responsabilização daqueles que insistem em tratar seres humanos como mercadoria descartável. A “lista limpa” não é solução, mas sintoma de um problema mais profundo: a tentativa persistente de normalizar o inaceitável.
[1] Orwell, George. 1984. Tradução Renata Russo Blazek. Monte Cristo Editora. Versão Digital. 2021. p. 275
[2]https://cptnacional.org.br/2025/07/15/tempestade_em_torno_da_lista_suja_razoes_de_uma_disputa/