A sentença da Corte IDH no caso Fernández Prieto y Tumbeiro

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Muitas decisões do Superior Tribunal de Justiça estão reconhecendo serem ilícitas abordagens policiais sem “fundadas suspeitas”, tendo por consequência a nulidade dos processos e, normalmente, a absolvição dos agentes criminosos.

Não compactuaremos jamais com ilicitudes, mas, com todo respeito, tentaremos demonstrar que o STJ ampliou – e muito – o conceito e os requisitos sobre “fundada suspeita” e os limites do que decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fernández Prieto y Tumbeiro vs Argentina, sentença de 1º.9.2020, bem assim em face do que já decidido o STF no RE 603.616.

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Essa sentença da Corte IDH envolve dois casos distintos: a) a prisão de Carlos Alberto Prieto em maio de 1992 por agentes da Polícia de Buenos Aires; b) e a prisão de Carlos Tubeiro, em janeiro de 1998, por agentes da Polícia Federal argentina. Segundo os autos, ambas prisões foram realizadas sem ordem judicial e sem “estado de flagrância”, indicando-se que em nenhum dos casos se estabeleceu, de maneira detalhada na documentação respectiva, quais foram os elementos que ensejaram a um “grau de suspeita razoável” sobre a prática de um possível crime pelos “detidos”.

Em síntese. Caso 1. No dia 26.5.1992, agentes da Polícia da Província de Buenos Aires estavam “andando na área de sua atuação” quando avistaram, numa zona quase desabitada de Mar de Plata, um veículo com “três sujeitos em seu interior em atividade suspeita”, dentro os quais estava Carlos Prieto.

Os agentes interceptaram o veículo, obrigaram todos descer e, na presença de duas testemunhas, iniciaram uma revista. No porta-malas do veículo, foi encontrado um tijolo envolvido em papel prateado com fita marrom cujo aroma e características poderia ser “maconha”, além de um revólver calibre 32 com dez projéteis e 30 cartuchos.

No assento ocupado por Fernández Prieto, foram encontrados 5 tijolos iguais ao anterior, uma pistola calibre 22 com 8 projéteis, um carregador e dois coldres de pistolas.

Caso 2. No dia 15.1.1998, por volta do meio-dia, Carlos Tumbeiro foi parado por agentes da Polícia Federal da Argentina “com a finalidade de identificação”, enquanto transitava por uma rua na cidade de Buenos Aires. Antes de ser feita uma revista em suas roupas, teria sido notado um alto nervosismo de Carlos Tumbeiro.

Enquanto era esperada uma “comprovação sobre a existência ou não de antecedentes penais”, os agentes policiais notaram que ele transportava, no meio de um jornal, substância branca semelhante ao cloridrato de cocaína, tendo havido a solicitação de presença de testemunhas e realizaram a prisão dele. Segundo a versão policial, sua atividade era “suspeita” porque suas roupas eram “inusuais para o local e por se mostrar evasivo ante a presença do policial.

A CF/88 prevê no art. 5º, LVI, que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Já o CPP dispõe que (art. 157, caput) serem inadmissíveis as provas ilícitas, bem assim as derivadas delas. A Constituição prevê ainda que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X) e que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI). No que se refere à buscas e apreensões, as regras estão no art. 240 do CPP.

No RE 603.616, o STF decidiu que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados” (Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJ de 9.5.2016).

Para o STF, a busca sem mandado não exige certeza do fato, pois “dificilmente a certeza estará ao alcance da polícia”. Desse modo, “por estar a certeza fora do alcance, a legislação costuma exigir modelos probatórios bem mais modestos para medidas de investigação. Para busca e apreensão, por exemplo, o Código de Processo Penal exige apenas “fundadas razões” – art. 240, §1. Disse ainda que, nas hipóteses de controle posterior das ações policiais, “o modelo probatório é o mesmo da busca e apreensão domiciliar – fundadas razões, art. 240, §1º, do CPP. Trata-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas”.

Não há descrição em lei do que sejam “fundadas razões”. Mas ficou expresso ainda na decisão que a locução “fundadas razões” demandará esforço de concretização e interpretação”.

Esse entendimento do STF foi posteriormente reafirmado em 2025 nos Embargos de Divergência no RE 1.472.570. Nesse caso, houve denúncia anônima a guardas municipais, noticiando que uma pessoa transportava drogas de uma residência até uma biqueira e trajava determinada roupa e conduzida uma motocicleta com placas identificadas. Além da fuga ao avistar os policiais, o envolvido dispensou 2 sacolas plásticas na qual carregava dois kits contendo porções da maconha, evidenciando a existência de justa causa para a abordagem pessoal. Assim, o fato de o réu afirmar que guardava mais entorpecentes em sua casa evidenciava a existência de justa causa para o ingresso também no seu domicílio, que resultou na apreensão de mais entorpecentes, tudo lícito como admitido no RE 603.616.

Em 11.4.2024, o plenário do STF julgou o HC 208.240 e fixou a seguinte tese: A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física”.

Da leitura e análise dos fundamentos, fica claro que o STF não admite atuações “arbitrárias”, sem mínimos elementos de “suspeita”, para que possa ser considerada legítima a atuação dos agentes estatais na apuração da prática de eventual conduta criminosa.

Mas, igualmente, reconhece a viabilidade de atuação do Estado quando diante de circunstâncias típicas e passíveis de apuração por técnicas de investigação, como, por exemplo, fuga, comportamento inusual (nervosismo), desvencilhamento de bens ou blitzes quando não presente elementos de arbitrariedade e/ou movidas por estereótipos de origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de discriminação.

No âmbito do STJ, há duas decisões consideradas “paradigmáticas”. A primeira é o HC 598.051-SP, em que assentou que “na espécie, não havia elementos objetivos, seguros e racionais que justificassem a invasão de domicílio do suspeito, porquanto a simples avaliação subjetiva dos policiais era insuficiente para conduzir a diligência de ingresso na residência, visto que não foi encontrado nenhum entorpecente na busca pessoa realizada em via pública”, complementando que “as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor”.

Nesse caso, o órgão fracionário do STJ reconheceu ainda que seria importante que fosse “totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo, e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar”.

Embora sejamos totalmente favoráveis à validade da ideia de uso das chamadas “câmaras corporais”, houve clara violação dos limites do que poderia ser decidido, tanto que o STF, provendo parcialmente recurso interposto pelo MPSP, anulou o julgado nessa parte, pois inexistiriam “tais requisitos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, nem tampouco no Tema 280 de Repercussão Geral julgado por essa Suprema Corte”. (RE 1.342.077-SP, STF, Relator Ministro Alexandre de Moraes, decisão de 2.12.2021).

A outra foi no HC 158.580-BA (DJ 25.4.2022). Tratava-se de busca pessoal ou veicular. A polícia se “deparou com um indivíduo desconhecido em atitude suspeita” e, ao abordá-lo e revistar sua mochila, encontrou porções de maconha e cocaína em seu interior. Não foi apresentada nenhuma justificativa concreta para a revista além da vaga menção a uma suposta “atitude suspeita”, algo insuficiente para tal medida.

Concluiu-se que o “art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata”. O STJ afastou a possibilidade de buscas com base em tirocínio/experiências policiais.

A partir desses julgados acima, inúmeros outros foram proferidos pelo STJ. A remissão é reiterada. Esse novo entendimento está sendo aplicado de forma retroativa a todos os demais casos que, até então, eram considerados a partir de outros standards de prova.

São muitas as decisões do STF modificando essa nova compreensão do STJ. No HC 253.262 (Min. Cristiano Zanin, de 11.4.2025), reconheceu-se que o STF já decidiu que: “se um agente do Estado não puder realizar abordagem em via pública a partir de comportamentos suspeitos do alvo, tais como fuga, gesticulações e demais reações típicas, já conhecidas pela ciência aplicada à atividade policial, haverá sério comprometimento do exercício da segurança pública” (RHC 229.514 AgR/PE, Min. Gilmar Mendes, DJ 23.10.2023)”.

Noutro, foi considerada legítima a atuação dos policiais rodoviários que executaram a prisão em flagrante do acusado, especialmente porque os referidos agentes públicos agiram depois de perceberem que ele apresentava nervosismo incomum diante da abordagem de rotina realizada por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF)”.

Essa circunstância seria “elemento mínimo a caracterizar fundadas razões (justa causa) para os policiais fazerem uma revista mais minuciosa e aparelhada no caminhão, momento em que lograram encontrar quase 360kg de cocaína. De resto, a vistoria realizada pelos agentes decorre da própria função de patrulhamento e policiamento ostensivo atribuídos à PRF, não havendo falar-se, portanto, em conduta desprovida de previsão legal e em desacordo com a Constituição de 1988(HC 231.111, Min. Cristiano Zanin, DJ de 13.10.2023).

E, por fim, também exemplificativamente, o STF reconheceu que o STJno caso concreto ora sob análise, após aplicar o Tema 280 de Repercussão Geral dessa Suprema Corte, foi mais longe, alegando que não obstante os agentes de segurança pública tenham recebido denúncia anônima acerca do tráfico de drogas no local e a suspeita tenha empreendido fuga para dentro do imóvel ao perceber a presença dos policiais, tais fatos não constituem fundamentos hábeis a permitir o ingresso na casa do acusado. Assim, entendeu que o ingresso dos policiais no imóvel somente poderia ocorrer após prévias diligências, desconsiderando as circunstâncias do caso concreto, quais sejam: denúncia anônima e fuga empreendida após a chegada dos policiais”.

Reconheceu que “não agiu com o costumeiro acerto o Tribunal de origem, pois acrescentou requisitos inexistentes no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, desrespeitando, dessa maneira, os parâmetros definidos no Tema 280 de Repercussão Geral por essa Suprema Corte” (Ag.Reg no RE 1.447.032, STF, Min. Luiz Fux, DJ de 11.10.2023).

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Há sim casos de excessos em abordagens realizadas e é preciso haver o devido ajuste. Entretanto, e seguindo o que assentado pelo STF, não pode haver um sério comprometimento do exercício da segurança se um agente do Estado não puder realizar abordagem em via pública a partir de comportamentos suspeitos do alvo, tais como fuga, gesticulações e demais reações típicas, já conhecidas pela ciência aplicada à atividade policial”.

Desconsiderar esses elementos, notadamente impedir as técnicas policiais típicas e estudadas pelas polícias na averiguação de fatos sob fundada suspeita (ou então em decorrência de fiscalizações de rotina e aleatórias, sem cunho discriminatório ou que caracterize fishing expedition) poderá ensejar exatamente a presença dos elementos que implicaram quase duas dezenas de condenações do Brasil na Corte IDH, que é a adoção de todas as formas e técnicas de apuração probatória (lícitas, por óbvio) para a responsabilização eventual dos agentes criminosos.

O grande problema não é a vedação de provas ilícitas, o que parece ser indiscutível, mas a interpretação ampliativa e desprotetiva do conceito do que sejam provas obtidas por meios ilícitos (o que, para nós, tem incorrido o STJ, respeitosamente), quando, em verdade, elas estão de acordo com o entendimento do guardião maior da Constituição e conforme o controle de convencionalidade.

São nossas considerações sintéticas, salvo melhor juízo. Quem quiser ter o texto integral, muito mais detalhado, pode acessá-lo e baixá-lo neste endereço.