Boa escrita para advogados que querem ser lidos

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A palavra escrita, uma das invenções mais poderosas da humanidade, se entrelaça com o Direito desde as origens da civilização. Da petição inicial ao recurso extraordinário, dos memoriais ao parecer, tudo no ofício jurídico depende da forma como organizamos nossos pensamentos antes de convertê-lo em texto – seja na tela, seja no papel, para os que ainda guardam o antigo hábito.

Sem a linguagem escrita, não nos reconheceríamos plenamente como seres humanos, nem teríamos construído grande parte do mundo em que vivemos, inclusive o mundo jurídico.

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Não é fácil, porém, transmitir com precisão uma ideia por meio da escrita. Não basta um ato de vontade, uma decisão tomada na hora de começar a escrever. O biógrafo Ruy Castro já advertiu: ninguém escreve bem, alguns reescrevem bem. A boa escrita não nasce pronta. Confesso que me senti aliviado ao me deparar com a lição. Se até um imortal da Academia Brasileira de Letras precisa se dar ao trabalho de reescrever um texto diversas vezes, nós, os mortais, não poderíamos esperar menos esforço.

Um texto legível e fluido é resultado de um processo: muitos vai-e-véns, sucessivas podas, acréscimos, meias-voltas, alguns insights, arrependimentos e muita reescrita. Primeiro, organizam-se as ideias; depois, lapida-se a forma. Este artigo, por exemplo, não fugiu à regra. Foi reescrito uma porção de vezes até chegar à sua versão final.

Diz-se, com razão, que a clareza é uma gentileza que o escritor presta ao leitor, um gesto de empatia. Mas como se escreve com clareza? Antes de começar, é preciso clareza de pensamento: saber exatamente sobre o que será o texto, evitar se perder em ramificações do tema, seguir passo a passo a linha do raciocínio. É preciso saber de antemão de onde se parte e aonde se quer chegar. Qualquer texto, inclusive o jurídico, deve ser compreensível até mesmo para quem não domina o assunto.

Mas não se iluda: a inteligência artificial não fará tudo isso por você. É necessário saber escrever bem para, só então, utilizar a máquina com proveito máximo. Ela pode ser uma aliada poderosa, mas apenas nas mãos de quem domina a linguagem escrita e sabe desenvolver ideias complexas.

Elementos de persuasão, argumentos, ganchos retóricos e princípios de estilo devem ser fornecidos previamente pelo autor, ainda que em pequenas amostras, como exemplos ou modelos que sirvam de guia. A IA multiplica o que recebe, mas ainda não inventa, com precisão e elegância, aquilo que não foi lhe dado.

Abandonemos o latim jurídico, de uma vez por todas. Por um lado, porque sua grafia, não raro, aparece em petições com erros; por outro, porque se trata de um arcaísmo incompatível com a comunicação contemporânea.

Não há mais necessidade de prestar homenagem à tradição romana por meio de uma linguagem morta. Já importamos e ainda utilizamos inúmeros institutos jurídicos romanos em nosso Direito. A estética da simplicidade venceu. Fiquemos, portanto, com a nossa língua luso-brasileira (para usar a denominação de nossa língua dada pelo ministro e poeta Carlos Ayres Britto), tão bela e cheia de significados.

Outra sugestão é eliminar palavras e expressões inúteis como aquelas fórmulas de início de frase: “vale ressaltar que”, “é importante frisar” — tudo isso deveria acender o alerta do revisor. Em geral, dizem pouco ou nada. Pior ainda: mostram que o autor não confia no que vai dizer, já que precisa de reforço de si próprio. Se algo é relevante, que se diga logo o que é. A supressão desses conectores inúteis torna o texto mais direto, firme e respeitoso com o tempo do leitor. Retirá-los, quando não fazem falta (e raramente fazem), é abrir caminho para uma argumentação limpa e eficaz.

Armadilha comum, especialmente entre advogados, é recorrer ao uso de sinônimos para termos técnicos. Na literatura, isso pode funcionar. No texto jurídico (e em qualquer linguagem científica), porém, a repetição de termos técnicos é aliada da precisão. Petição inicial não é “exordial”, tampouco “peça de ataque”. Supremo Tribunal Federal não é “Excelso Pretório”, nem “Sumo Aerópago”. Recurso Extraordinário não é “apelo extremo”.

Substituir termos técnicos consolidados é arriscado porque pode gerar ambiguidade. Ainda que os sinônimos possam trazer, num primeiro olhar, elegância e estilo, pode gerar dúvida no leitor a respeito de qual instituto jurídico está sendo tratando. Utilizar variações para termos comuns – “decisão/pronunciamento judicial”, “tribunal/corte”, “autor/requerente” – é aceitável, desde que não comprometa a clareza. Mas a orientação é simples: use o termo técnico consagrado e mantenha-se fiel a ele ao longo do texto. Clareza e precisão técnica não são ornamentos: são instrumentos de persuasão.

Também é essencial o uso de parágrafos curtos e frases bem pontuadas com sujeito, verbo e predicado, nessa ordem. Essa orientação é corriqueira nas falas do ministro Luís Roberto Barroso e encontra eco em boas práticas de redação jurídica contemporânea. Use, sempre que possível, a voz ativa. O próprio JOTA, por exemplo, estabelece que os artigos submetidos ao periódico devem conter “parágrafos curtos e bem pontuados”. Não somos Saramago. Trata-se de uma escolha de estilo, sim, mas, sobretudo, de respeito ao leitor.

Substitua o uso dos gerúndios pelo ponto final. “Tendo em conta que”, “considerando que”, no meio das frases costuma tornar o parágrafo prolixo e impedir as necessárias pausas entre as frases. Orações explicativas em excesso, aquelas postas entre vírgulas, devem ser evitadas, sobretudo quando o parágrafo estiver longo. Perde-se o fio da meada. Inicie uma nova ideia com uma nova frase. Boas dicas também podem ser encontradas na famosa obra de Antonio Gidi sobre redação jurídica.

Em The sense of style: The thinking person’s guide to writing in the 21st century, Steven Pinker nos ensina como escrever melhor a partir de estudos sobre o funcionamento do cérebro humano. Ele ensina que a compreensão deve se dar sem esforço desnecessário por parte do leitor. Nesse contexto, o escritor precisa tomar cuidado com a chamada “maldição do conhecimento”: quando o escritor presume que os leitores possuem a mesma base de conhecimento que ele, tornando o texto inacessível ou de difícil acesso (desencontro entre texto e leitor).

Por isso, é fundamental ter em mente que, ao escrever, se está transmitindo uma ideia a alguém que não a conhece. Em outra passagem, o teórico afirma que escrever é o mostrar o mundo ao leitor. O quanto se consegue esse intento é a medida do sucesso de um texto.

Se há uma máxima que todo advogado deveria impregnar na consciência é que o leitor jurídico em geral é muito ocupado. O juiz lê uma dúzia de petições por dia. O desembargador precisa decidir dezenas de processos por semana. O assessor de ministro enfrenta centenas de recursos por ano. O tempo é muito escasso e a atenção é disputada.

Por isso, não se deve escrever para impressionar. Deve-se escrever para ser compreendido. Isso implica escrever menos, organizar bem o texto, sinalizar os tópicos com clareza, evitar floreios e manter o foco. Bons títulos, boas aberturas, subtítulos bem escolhidos e transições suaves entre as partes fazem toda a diferença.

A escrita jurídica não é mero receptáculo do argumento, ela é constructo do argumento. A forma como se escreve influencia a credibilidade do que se escreve. Um texto confuso desmerece uma boa tese. Um texto claro pode valorizar uma tese mediana.

Trata-se, portanto, de abandonar definitivamente o mito de que “juridiquês” é sinônimo de rigor técnico. Escrever bem, com clareza, não é simplificar o Direito, mas torná-lo mais acessível, mais racional e, por consequência, mais persuasivo. É ser sofisticado.

A tríade recomendável é a seguinte: reescrever, simplificar e convencer. Menos jargões e arcaísmos e mais leitura de livros não jurídicos, porque ninguém nasce com habilidades inatas de redação. Afinal, escrever bem é advogar melhor.