Diferenças na arbitragem dos setores de energia elétrica e gás natural

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De início destaca-se que as normas do setor de energia elétrica têm origem no Código de Águas de 1943 (Decreto Federal 24.643), enquanto o setor de distribuição de gás canalizado começou a ter regulamentação em 1986 com a Portaria MME 1060/1986. Isto se deve ao fato que até então o gás canalizado era distribuído apenas pelas duas distribuidoras estaduais existentes (SP e RJ). Era um gás derivado de nafta (oriundo do petróleo).

Um segundo normativo foi do legislador da Constituição Federal de 1988, que separou em capítulos e artigos distintos a distribuição de gás canalizado (artigo 25, §2º)[1] da produção e transporte através de dutos[2].

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Esta escolha soberana da Carta Magna permanece até o presente momento. Portanto, é com esse conjunto normativo que se elaboram as normas estaduais para a comercialização do gás natural. Com base nesse sistema as partes negociam os contratos de compra e venda no mercado livre e as consequentes cláusulas arbitrais, no recém-iniciado mercado livre, respeitadas as normas regulatórias estaduais.

Diferentemente, no setor de energia elétrica onde o legislador constituinte outorgou à União a competência para legislar e regular sobre os serviços e instalações de energia elétrica na letra B, do inciso XII, do artigo 25 da Constituição Federal. Nota-se que a sapiência do constituinte prescreveu o gênero “serviços” sem lhe atribuir qualquer designação de públicos o que exige uma interpretação sistêmica do aplicador dessas normas.

Desde o início da reformulação do setor elétrico o legislador ordinário prescreveu na Lei Federal 9.074 de 7/7/1995, um mercado livre regulado representado pelos agentes comercializadores e os consumidores livres. Um mercado livre onde as compras e vendas são de exclusiva responsabilidade dos compradores e vendedores, ressalvadas as normas indisponíveis.

Posteriormente, após a crise do racionamento o modelo normativo do setor elétrico foi reformulado atribuindo-se a CCEE, as obrigações atinentes às operações comerciais realizadas no mercado livre, dentre elas a de realizar a contabilização da energia elétrica disponibilizada e a consumida pelos agentes (vendedor e comprador).

Neste cenário conferiram-se obrigações às comercializadoras, as empresas compradoras de energia elétrica (consumidores livres) e atribuições à CCEE que deram segurança jurídica aos agentes econômicos, dentre elas a de a CCEE realizar a contabilização da energia elétrica disponibilizada e a consumida pelos agentes (vendedor e comprador)[3].

E mais, todos os conflitos decorrentes das relações contratuais no mercado livre de energia elétrica seriam solucionados através de procedimentos arbitrais em obediência à Convenção Arbitral e a Resolução Homologatória Aneel 507/2007.

Ressalta-se aqui que o cenário para implantação do mercado livre do gás natural tem percorrido caminhos completamente diferentes: publicação da Lei do Petróleo (Lei Federal 9.478/1996) sem capítulo específico para as atividades econômicas vinculadas ao gás natural.

Enquanto isso, algumas distribuidoras estaduais foram desestatizadas já com estrutura normativa regulatória que indicava a abertura do mercado de gás natural ponderando um espaço temporal[4] sem impactar o equilíbrio econômico-financeiro da distribuidora estadual. Assim, o mercado livre para o gás natural, embora regulamentado, não pode ter o crescimento esperado porque continuou a ser dominado pelo agente estatal fornecedor de gás natural a todo o mercado nacional.

Após essa lei diversas normas regulatórias foram elaboradas pela ANP sem, no entanto, amenizar o monopólio do agente estatal. Em seguida foi publicada a primeira Lei do Gás (Lei Federal 11.909 de 4/3/2009) que não chegou a ser implementada, visto que, as infraestruturas continuavam pertencentes a um único agente. Posteriormente, essa lei foi revogada e hoje aplicamos a atual Lei do Gás que é a Lei 14.134 de 08/04/2021.

Neste cenário normativo foi firmado um termo de compromisso junto ao Cade onde a Petrobras se obrigava a vender a participação nas empresas de transporte de gás natural por gasodutos possibilitando o ingresso de agentes econômicos da iniciativa privada para desenvolver essa atividade e possibilitar a implantação e desenvolvimento do mercado livre de gás natural no Brasil.

Neste período foram privatizados alguns gasodutos de transporte sem, contudo, estabelecer-se um sistema tarifário aderente à situação inicial do mercado livre brasileiro para o gás natural.

Nos últimos meses começou a ser divulgada a informação da assinatura dos primeiros contratos de compra e venda de gás natural entre os usuários livres industriais e as comercializadoras autorizadas pela ANP e/ou pela agência reguladora estadual.

Enquanto no setor de energia elétrica o operador nacional do sistema garante que a energia comprada seja entregue pela distribuidora local ao comprador final (independentemente de quem a gerar por ser um bem fungível), até o momento não parece claro existir esta segurança no mercado livre de gás natural.

Consequentemente, há no mercado de energia elétrica uma garantia de entrega ininterrompível ao consumidor livre. As possíveis sobras e déficits são contabilizadas pela CCEE e, consequentemente, pagas pelos agentes econômicos envolvidos.

Apresentado este breve comparativo do mercado de energia elétrica e do de gás natural se constata a enorme especificidade do contrato de compra e venda de gás natural no mercado livre e a função estratégica da cláusula arbitral para solução dos futuros conflitos que poderão surgir entre a comercializadora e o consumidor livre, transportadoras e consumidores livres, importadores e  produtores e comercializadoras.

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É essa cláusula que poderá dar maior ou menor segurança jurídica aos agentes envolvidos quando do surgimento de uma controvérsia. Consequentemente, dever-se-á observar quando da negociação do contrato de compra e venda de gás natural a cadeia (se houver) de contratos para estabelecer os deveres e obrigações de cada uma das partes contratantes, respeitada a regulamentação estadual se houver.

Vale lembrar que o mercado de energia elétrica já tem duas décadas de experiência e tem muito a ensinar ao mercado livre de gás natural. Ainda que sejam produtos diferentes com legislação e regulação diferentes (neste caso do gás natural, normas estaduais e federais) que exigem dos negociadores habilidades ímpares para avaliar os efeitos da cláusula arbitral na cadeia de contratos do mercado livre verificando se há alguma conexão/interligação e/ou interdependência contratual.

Em suma: o futuro nos reserva desafios para prever a segurança jurídica dos contratos de compra e venda de gás natural no mercado livre brasileiro.


[1] “§ 2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”

[2] Atentar que não estão descritas neste artigo o gás natural comprimido e o líquido. Só o transportado por gasodutos.

[3] Convenção de Comercialização aprovada pela Resolução Normativa ANEEL nº 1009/2022.

[4] Caso do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro.