Os excessos nas autuações fiscais sob o rótulo de pejotização

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A evolução das relações de trabalho mostra que a dinâmica do exercício de atividade profissional não está mais restrita ao modelo tradicional empregador-empregado. É uma realidade o crescimento de outros meios de realização de trabalho nos quais predomina autonomia profissional, tais como profissionais liberais de atividades intelectuais, técnicas-científicas, artísticas e desportivas, empreendedores individuais, freelancers, entre outros.

O ordenamento jurídico deve se ajustar às novas realidades sociais, recepcionando-as para lhes conferir o tratamento normativo mais adequado, quando alinhado aos legítimos anseios sociais, pautados na valorização do trabalho humano, livre iniciativa e livre exercício de atividade econômica (artigo 170 da CF/88).

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Felizmente, é o que se viu, em princípio pelo menos, com a edição do artigo 129 da Lei 11.196/2005, o qual passou a conferir o tratamento próprio das pessoas jurídicas, para fins tributários e previdenciários, quando assim constituídas para prestação de serviços intelectuais, incluindo os de natureza científica, artística ou cultural, e ainda que prestados de forma personalíssima pelo sócio (ou sócios), com ou sem auxílio de empregados. Ressalva-se apenas a hipótese de abuso de personalidade da pessoa jurídica (artigo 50 do CC), o que exige desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Contudo, o que se tem visto na prática é a reiterada negativa de vigência do artigo 129 da Lei 11.196/2005 pelo fisco federal, ainda que de forma velada. A Receita Federal tem se estruturado para realizar autuações sobre prestações de serviços por intermédio de pessoas jurídicas, quando executados de forma pessoal e direta pelo sócio.

Requalificam-se os pagamentos como se correspondessem a remuneração por suposto trabalho com vínculo empregatício do sócio da contratada, ensejando o lançamento de IRPF com alíquotas até 27,5% e contribuições previdenciárias e de terceiros sobre suposto salário-de-contribuição.

Para tais autuações, a Receita tem atribuído, em caráter pejorativo, a expressão pejotização, em alusão à suposta conduta ilícita de dissimular, pelo contrato de prestação de serviços, relação jurídica diversa da existente. E, via de regra, impõe-se multa de ofício agravada, sob a acusação de dolo, sonegação, fraude ou conluio.

Em seu Plano Anual de Fiscalização[1] de 2020 e 2021, a Receita informa que um dos principais temas que será objeto de fiscalizações é a “omissão de rendimentos tributáveis recebidos de pessoas jurídicas, considerando remuneração disfarçada envolvendo situações de ‘pejotização’”.

As autuações sob o rótulo de pejotização abrangem também a requalificação de pagamentos efetuados a pessoas jurídicas como se fossem remuneração paga a pessoa física na condição de executivo, ainda que sem vínculo celetista, ensejando igualmente a cobrança de IRPF e contribuições previdenciárias (suposto contribuinte individual).

É nesse cenário que se identifica uma série de autuações fiscais sobre o tema e que sinalizam excessos e arbitrariedades do fisco no trato da matéria.

Não se nega a existência de operações artificiais nas quais se utiliza a roupagem da pessoa jurídica para ocultar outro tipo de vínculo jurídico de fato, como a relação celetista. E tais condutas abusivas devem, naturalmente, ser reprimidas pelos meios próprios conferidos ao fisco.

Entretanto, um olhar mais amplo do histórico de autuações invocando a dita pejotização mostra que a lógica do lançamento fiscal vem sendo invertida. A percepção geral é que o fisco, implicitamente, adota o pressuposto enviesado de que pessoas jurídicas exercendo serviços de forma personalíssima por meio de seu sócio são fraudulentas. E adotando essa conclusão a priori (embora assim não declarada de forma expressa), constrói uma narrativa buscando justificá-la.

Como exemplo de condutas que evidenciam tais práticas fiscais, entre outras, pode-se citar:

  1. a desconsideração da regra vigente do artigo 129 da Lei 11.196/2005;
  2. a referência a elementos na prestação do serviço como determinantes para a caracterização de vínculo empregatício, embora eles sejam comuns a outros tipos de trabalho;
  3. menção a requisitos inexistentes no ordenamento jurídico para que se possa a afastar a relação de emprego;
  4. menção à terceirização de atividade-fim como elemento que caracterizaria relação celetista, o que já foi afastado pelo STF na ADPF 324 e no RE 958.252 (Tema 725);
  5. fundamentações genéricas das autuações, que poderiam ser utilizadas em quaisquer situações fáticas para dar a aparência de motivação do lançamento;
  6. seleção de uma amostragem de alguns prestadores em que o fisco vislumbra supostos elementos de relação de emprego, replicando-se o tratamento indiscriminadamente para todos os demais, sem análise individualizada.

O Carf[2] tem assinalado que, entre todos os requisitos simultâneos para caracterização da relação de emprego, o mais importante é a subordinação, uma vez que nas relações comerciais também há onerosidade e pode haver não eventualidade.

E a pessoalidade não é mais relevante para tal distinção, em razão do artigo 129, da Lei 11.196/2005. Contudo, “não se pode, sob pena de ofensa ao direito, entender que qualquer forma de direção da prestação de serviços é a subordinação típica das normas trabalhistas”.

Há uma grande diferença entre: (i) a subordinação própria das relações de emprego, nas quais o empregado precisa obedecer às ordens diretivas do seu empregador, sem autonomia na execução dos trabalhos; e (ii) a subordinação contratual, na qual as partes ficam vinculadas às cláusulas do contrato estipuladas de forma bilateral por exercício regular da autonomia privada (observância ao princípio do pacta sunt servanda).

Em suma, a Receita Federal não tem feito a devida distinção entre aqueles que utilizam da figura de pessoa jurídica como meio de mascarar uma relação de emprego, daqueles que, amparados pelo artigo 129 da Lei 11.196/2005, utilizam-se da estrutura da pessoa jurídica de forma legítima.

É diante desse contexto que foi ajuizada a ADC 66, perante o STF, buscando a confirmação da constitucionalidade do referido dispositivo legal, destacando que, “expressa ou implicitamente, juízes e auditores da Receita Federal têm deixado de aplicar a norma em discussão para determinar a incidência, a pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais enquadradas nos pressupostos do art. 129 da Lei 11.196/2005, do estatuto fiscal e previdenciário das pessoas físicas”.

Em dezembro de 2020, o STF julgou procedente a ADC 66, asseverando que o dispositivo legal em comento está em harmonia com a “normatividade constitucional que abriga a liberdade de iniciativa como fundamento da República”, observando a possibilidade de aferição da regularidade da contratação em cada caso concreto, mediante questionamento judicial, tal como já assegura a parte final do preceito legal.

Assim, o artigo 129 da Lei 11.196/2005 é de observância obrigatória e deve ser respeitado pela Administração Tributária, que não pode escolher aplicá-lo ou não, tampouco ignorar a sua existência nos procedimentos fiscalizatórios (o que equivale igualmente à negativa de vigência).

Felizmente, o STF tem se posicionado de forma a validar as relações contratuais envolvendo prestadores que atuam por meio de pessoa jurídica, ainda que de forma personalíssima, como evidenciado por uma série de decisões em sede de reclamações[3], prestigiando a liberdade dos profissionais para estruturar e organizar suas atividades dentro do regime jurídico vigente, com fundamento na livre iniciativa.

Espera-se que a jurisprudência do STF, bem como o aprimoramento da jurisprudência administrativa sobre o tema, sirvam como freio aos excessos e arbitrariedades do fisco federal nas autuações realizadas sob a alcunha de pejotização, de forma que a opção legítima, baseada na livre iniciativa, de se exercer atividade profissional com autonomia por meio de pessoa jurídica seja respeitada, assim como seus efeitos jurídico-tributários.


[2] Acórdão 2201-004.378 – 03/04/2018.

[3] Rcl 66.121 – 19/12/2024; Rcl 58.665 – 02/07/2024; Rcl 63.449 – 09/05/2024; Rcl 64.445 – 04/04/2024.