No ambiente do Direito Internacional da Propriedade Intelectual, quando se pensa em fontes normativas multilaterais, é comum que a reflexão seja constrita a três tratados: Convenção União de Paris (CUP), de 1883, Convenção União de Berna (CUB), de 1886, e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (ADPIC/TRIPs), de 1994. Factualmente, tais são os marcos específicos sobre direitos intelectuais que obrigam todos os membros da Organização Mundial do Comércio.
Por sua vez, a Convenção das Nações Unidas sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), internalizada no Brasil em 2014, é uma lei uniforme, que trata de Direito Comercial Internacional de forma genérica, contemplando os direitos intelectuais em dois únicos preceitos: o artigo 41 que, em síntese, faz remissão ao dispositivo subsequente; e o artigo 42, referente ao dever do vendedor de entregar as mercadorias livres de quaisquer direitos e reivindicações de terceiros.
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O uso da expressão propriedade intelectual, por mais consagrada que seja, é ingrediente de muita confusão[1]. Não é incomum, por exemplo, a tentação de colocar direitos autorais e industriais na mesma tigela, como se tudo fosse a mesma sopa – pasteurizada e rala. Outras vezes, a gula excessiva converte exclusivos juridicamente garantidos em direitos reais típicos à regulação do Direito Civil tradicional[2] – o que obviamente não são. Enfim, como se sabe, o apressado come cru.
Uma combinação particularmente indigesta, em parte derivada da analogia irrefletida (sem mutatis mutandi) com direitos de posse e propriedade sobre móveis corpóreos, é a de imaginar a tranquila e plena circulação transfronteiriça de bens sobre os quais incidem exclusivos (patentes, desenhos industriais, direitos autorais, programas de computador, variedades vegetais, microchips, marcas etc.), como se estas se incorporassem ao substrato material dos bens aos quais são relacionadas. Porém, tal como sói ocorrer com algumas conspícuas garrafas de vinhos, os direitos intelectuais nem sempre cruzam bem os oceanos.
A proteção intelectual é predominantemente territorial, sobretudo no campo industrial, com escassas exceções. Dessarte, embora se verifique um grau elevado de harmonia, decorrente dos mencionados tratados-contratos, deve-se sempre estar atento para o direito territorial do lugar da produção e do da comercialização de bens relacionados aos direitos intelectuais protegidos: os titulares desses direitos, seus licenciados e o regime jurídico da proteção podem ser diversos.
A CISG – por exemplo – não regula diretamente matéria de atribuição de titularidade e tutela jurídica dos direitos intelectuais. Há aí, porém, regras voltadas a esclarecer a alocação da responsabilidade decorrente da violação de direitos intelectuais de terceiros. Isso é posto em seu artigo 42, o qual complementa o artigo 41, ambos sobre direitos e reivindicação sobre mercadorias, como direitos de propriedade, ônus reais e direitos de retenção.
Cuida-se de regra jurídica que densifica valores símiles àqueles havidos no Código Comercial Brasileiro de 1850[3], ainda que na fonte normativa imperial, a preocupação fosse adstrita a patologias como evicção ou vícios ocultos.
Como se sabe, a CISG buscou algum grau de equilíbrio entre as tradições jurídicas romano-germânica e anglo-americana. Se isso já implica uma miríade de diferenças e, portanto, dificuldades de uniformização no campo dos direitos contratuais, as categorias dogmáticas e suas implicações práticas são ainda mais divergentes no campo daquilo que, na nossa tradição, denominamos “direitos reais”; esta própria uma categoria jurídica sem correspondência exata nas jurisdições de common law.
Isso foi importantíssimo na elaboração dos artigos 41 e 42, referentes a direitos de terceiros sobre as mercadorias, objeto do contrato de compra e venda. A separação do tema nos dois artigos mencionados – um para os direitos de terceiros sobre as coisas, outro para os direitos intelectuais – segue a lógica da necessária adequação às sistemáticas jurídicas estatais e, talvez com maior importância, o reconhecimento do caráter estritamente territorial de direitos de propriedade industrial.
Em outros termos, se direitos de propriedade e ônus reais acompanham a coisa onde quer que ela vá, o mesmo não ocorrerá com o bem de consumo que corporifica o iter imaterial de uma patente ou marca, cujos efeitos não transcendem as fronteiras do país de seu registro, ou, no máximo, de uma zona ampliada, como a das patentes europeias unificadas. Daí as diferenças entre o tratamento apresentadas no quadro abaixo:
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Artigo 41 |
Artigo 42 |
Conhecimento prévio do vendedor sobre os direitos de terceiros |
Irrelevante |
Se “souber ou não puder ignorar” no “momento da conclusão do contrato” |
Lugar relevante para o direito de terceiro |
Irrelevante |
País do estabelecimento do comprador ou Pais de revenda ou uso, se já previsto na celebração |
Exceção em razão do conhecimento do comprador sobre direito de terceiro |
Se houver conhecimento do direito de terceiro e concordância expressa |
Se houver conhecimento do comprador a respeito do direito de terceiro |
Exceção de ajuste do vendedor às instruções do comprador |
Irrelevante |
Se o direito resultar da atenção às instruções do comprador |
Factualmente, o tratamento dos direitos intelectuais segue a lógica da territorialidade de sua constituição e exigibilidade. Em complemento harmônico, a atribuição da obrigação de entregar os bens livres de pretensões de terceiros e, por conseguinte, dos eventuais efeitos de seu inadimplemento é equilibrada a partir da distribuição, entre as partes, da informação e dos custos econômicos de sua obtenção. Tais obrigações são mais ou menos exigentes a se depender do regime jurídico da exaustão (nacional, comunitária ou internacional) vigentes[4].
Tenha-se por entrada as exceções: se comprovado o conhecimento do comprador a respeito dos direitos intelectuais de terceiros incidentes sobre os bens oferecidos pelo vendedor, não cabe haverá direito do primeiro de exigir a obrigação de entrega livre de tais pretensões. Ciente, em razão de aviso (boa-fé objetiva no viés da informação[5]) ou das circunstâncias (deveria saber como alguém do métier), não cabe ao adquirente reclamar da ardência do kimchi coreano.
Do mesmo modo, a fiel atenção às instruções dadas pelo comprador autoriza ao vendedor descurar da verificação dos direitos intelectuais no país de destino dos bens. Uma vez que se peça a gema do ovo dura, nela não se molhará o pão. Assim, informações conhecidas e comandos seguidos impedem, no mínimo, a exigibilidade da obrigação de entregar o bem livre dos mencionados direitos.
Veja-se que nem sempre a obtenção informacional será simples, em particular sobre bens imateriais que fogem ao sistema atributivo de direito. Uma coisa é consultar o banco de dados do INPI e verificar se há direito exclusivo constituído; outra é saber se o bem adquirido incide em violação à direito de autor, expressão de publicidade, conjunto-imagem ou marca de fato.
Para os direitos intelectuais que não constam em um sistema de burocracia pública, o ônus para o adquirente poderia ser elevado, em demasia, não fossem as regras de CISG. Nem sempre é simples, barato e transparente descobrir o que está em domínio público.
O prato principal é composto a partir da sólida presunção de dever de se informar a respeito das mercadorias vendidas. Muitas vezes o vendedor será o próprio produtor dos bens; noutras, seu representante ou distribuidor. Nesses casos, lógico pressupor o conhecimento a respeito da distribuição geográfica dos direitos de propriedade industrial incorporados às mercadorias. A situação de um intermediário independente também aponta para a razoabilidade de que este busque informação suficiente.
Presume-se, portanto, que o produtor, distribuidor, representante ou mero intermediário sem vínculo jurídico com o produtor sejam responsáveis por aquilo que oferecem. O chef é responsável pelos ingredientes secretos de sua receita e, portanto, pelas alergias que possam causar. Cabe-lhe, portanto, informar-se sobre as restrições dos comensais.
Por fim, como sobremesa, a vinculação da obrigação se dá ao território onde a mercadoria será utilizada ou comercializada. Presume-se que este seja o do estabelecimento do comprador, admitindo-se o território de outro Estado, desde que as partes o saibam por ocasião da celebração do contrato. Trata-se de regra relativamente flexível, possibilitando a adaptação aos contextos da prática entre as partes e dos usos setoriais. Não se exige notificação ou termo contratual expresso, mas, apenas, que se saiba do destino específico dos bens.
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Caso contrário, a presunção da conformidade ao lugar do estabelecimento do comprador permanece e, caso este pretenda revender ou utilizar os bens em outros Estados, isso já não é problema do vendedor. Assim, embora tenha a panna cotta como conclusão default, oferece-se a fruta da estação ao convidado diabético. Se este quiser comer doces na padaria ao lado, que seja por sua conta e risco.
Uma grande virtude do regime do artigo 42 da CISG é a junção da simplicidade à coerência. É relativamente fácil deduzir seu conteúdo a partir do axioma da territorialidade da propriedade intelectual e da economia informacional das partes e setores comerciais. A pressa aliada à imprecisão de se pensar a expressão patrimonial dos direitos intelectuais como uma forma especial de direitos reais comuns, porém, é raciocínio obviamente abdutivo e, como tal, perigosamente conducente ao erro.
Como nota final, vale a reflexão sobre o diálogo entre a CISG e a Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/96): deve o século XXI ser compatível com regimes de exaustão nacional de direitos, em detrimento da concorrência do local de destino. Ou em outras palavras, faz sentido a continuidade de preços discriminatórios – a pior – contra o mercado interno (artigo 219 da CRFB)? Esse tema fica para um próximo texto.
[1] ROUBIER, Paul. Droits Intellectuels ou Droits de Clientèle. Paris: Editora Siney, 1935, p. 31.
[2] Sobre as similitudes e distinções das propriedades que incidem sobre bens de produção, face aquelas classificadas e pertinentes sobre bens civis vide: BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Direito Civil da Propriedade Intelectual. 4ª Edição, Rio de Janeiro: 2024, p. 52 e seguintes.
[3] Lei 556/1850: Art. 214 – O vendedor é obrigado a fazer boa ao comprador a coisa vendida, ainda que no contrato se estipule que não fica sujeito a responsabilidade alguma; salvo se o comprador, conhecendo o perigo ao tempo da compra, declarar expressamente no instrumento do contrato, que toma sobre si o risco; devendo entender-se que esta cláusula não compreende o risco da coisa vendida, que, por algum título, possa pertencer a terceiro.
[4] Sobre o regime de exaustão como matéria de política pública, vide CENTRE PAUL ROUBIER. L’incidence du Droit Communautaire de la Concurrence sur Les Droits de Propriété industrielle. Écully: Librairies Techniques, 1977, p. 74.
[5] “Quais são, então, as características essenciais que distinguem o direito comercial do direito civil geral, o comerciante do homem privado? O comerciante é “homem de negócios”. Sua profissão é fechar negócios jurídicos, ele fecha negócios jurídicos do mesmo tipo em quantidade. Por isso, pode-se exigir mais, de seu conhecimento de negócios, do que de um particular leigo” RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. 2ª Edição, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 89.