O transporte público coletivo enfrenta, há mais de três décadas, cenário complexo e desafiador, com a mobilidade urbana coletiva marcada por uma crise estrutural, caracterizada, sobretudo, pela carência de quantidade suficiente de bons projetos de infraestrutura, pela redução da quantidade de passageiros transportados e pela diminuição da velocidade operacional.
Fase agravada pela pandemia de Covid-19, que intensificou a queda de produtividade, a marca do transporte coletivo nesse período. A combinação desses fatores afetou diretamente o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos vigentes nas cidades brasileiras.
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O modelo de remuneração amplamente adotado, até 2019, chegou ao seu limite, principalmente nas capitais, regiões metropolitanas e cidades de grande porte. A tarifa pública como a única, ou principal fonte de recursos para o custeio da operação, mostrou-se totalmente incapaz de prover transporte público para a população, um serviço essencial e um direito social, previsto na Constituição Federal.
Nesse contexto, a aplicação de subsídios, para remunerar a prestação do serviço, começou a ser analisada e implementada por um grupo relevante de municípios. Em todo o país, há 395 cidades que subsidiam o transporte público por ônibus, 148 delas já promoveram a separação das tarifas pública e de remuneração. Pressionados pelo desaparecimento de quase a totalidade dos passageiros transportados no início da pandemia, os gestores públicos viram-se obrigados a financiar o transporte coletivo com recursos extratarifários. Atualmente, a principal fonte de obtenção de tais recursos são os orçamentos públicos.
Além das iniciativas de subsidiar parcialmente, em diversos níveis, os deslocamentos das pessoas, um grupo de cidades, com perfil específico, conseguiu viabilizar a adoção da tarifa zero. Segundo a publicação Tarifa zero nas cidades do Brasil, da NTU (2024), a análise dos municípios que adotaram a tarifa zero demonstrou que, na maior parte dos casos, não há estudos prévios, a tarifa zero é praticada em cidades com população total menor que 50 mil habitantes, com pequena quantidade de linhas e ônibus, e com o financiamento realizado exclusivamente com recursos originários dos orçamentos municipais.
Nessas localidades, os passageiros fazem uso do transporte coletivo sem pagar valor algum de tarifa pública. Até maio de 2025, 154 cidades haviam adotado a tarifa zero como base de sua política tarifária, sendo que em 127 delas a gratuidade abrange todo o sistema, e em 27 o benefício é concedido de forma parcial.
Desde então, para esse grupo específico de municípios, algumas situações começaram a chamar a atenção de pesquisadores e gestores públicos. A tarifa zero tem potencial para transformar o transporte público, com consequências reais verificadas na gestão pública e repercussões importantes no cotidiano das cidades e na vida das pessoas.
A adoção desse novo modelo de financiamento gera impactos diretos e indiretos na saúde, na economia, no meio ambiente, na área social e, obviamente, na mobilidade urbana das cidades. Contudo, esses impactos carecem de pesquisas e estudos, com base em levantamentos constantes de dados e informações confiáveis, para serem analisados e quantificados.
Por outro lado, a forma de prestação do serviço é modificada em relação aos aspectos pertinentes à regulamentação e aos fatores ligados à operação dos sistemas de transporte público por ônibus.
Chamam a atenção as situações depreendidas dos impactos percebidos no planejamento operacional do sistema de transporte coletivo das cidades que possuem tarifa zero. As experiências vigentes e as observações realizadas indicam desafios importantes, dos quais resultam alertas e recomendações para a gestão pública.
Os episódios de maior destaque são: o aumento da demanda e necessária calibragem da oferta; a alteração da matriz de deslocamentos; a remodelagem da rede de transporte, com foco na reorganização dos sistemas viário e de circulação; os efeitos na qualidade do serviço ofertado; e, por fim, o monitoramento dos resultados.
O impacto mais imediato é o aumento da quantidade de pessoas transportadas, que requer ajustes na oferta de serviço. Segundo dados apurados e divulgados pela NTU (2024), o acréscimo de demanda é muito expressivo em praticamente todas as cidades que praticam tarifa zero.
Os maiores aumentos foram observados em Caucaia-CE (371%), Luziânia-GO (202%) e Maricá-RJ (144%). Nessas mesmas cidades, a oferta de serviço foi ampliada em 46%, 83% e 160%, respectivamente. Portanto, os comportamentos da demanda e da oferta não são semelhantes.
Por isso, o planejamento operacional precisa regular a oferta, com base nos demais fatores que influenciam o comportamento da demanda, como, por exemplo, a quantidade e cobertura das linhas, o número de ônibus, características do uso e ocupação do solo, e a localização dos principais polos geradores de tráfego, entre outros.
A mudança da matriz de deslocamentos será resultado decorrente do aumento da demanda e do ajuste da oferta. A não cobrança de tarifas públicas da população vai gerar maior quantidade de viagens realizadas pelo transporte público por ônibus. Também é provável que haja migração modal, em que parcela das viagens, que até então eram feitas a pé, por automóveis e motocicletas, seja realizada pelos ônibus.
Há também mudança no perfil das viagens, com maior ocorrência daquelas de curtas distâncias (importantes para desestimular o uso do transporte individual oferecido por aplicativos), deslocamentos nos entrepicos e uso do ônibus para diferentes motivos de viagens, sobretudo lazer em dias específicos da semana. Ambas as situações modificarão o perfil da mobilidade urbana das cidades, com o transporte público em viés de protagonismo.
Com a incidência dos impactos apontados anteriormente, é indicado que o poder público, por meio da atuação das instituições que lidam com a mobilidade urbana, e dos instrumentos de intervenção existentes, promova remodelagem da rede de transporte. Será necessária uma adequação à nova dinâmica imposta pela tarifa zero.
Locais que carecem de melhores e novas infraestruturas podem sofrer intervenções (pontos de embarque e desembarque, estações, terminais etc.). Medidas de priorização do tráfego dos ônibus, como a criação de faixas exclusivas, devem ser adotadas. Ou seja, novo ordenamento do tráfego será importante para evitar comboios de ônibus, congestionamentos e garantir fluidez.
Um tema que se relaciona com todos os demais já tratados é o da qualidade do serviço ofertado para a população. O nível de qualidade possível e desejável, aspecto transversal no debate sobre a mobilidade urbana coletiva, ganha maior relevância após a implantação da tarifa zero.
A definição e a elaboração de métricas e instrumentos para aferição e monitoramento da qualidade do serviço, amparadas em metodologias testadas, comprovadas e consolidadas, são fundamentais. Devem ser consideradas as experiências, percepções e observações dos clientes do transporte coletivo, mas também dos demais envolvidos na mobilidade urbana, os pedestres, os ciclistas, os motoristas de veículos motorizados particulares. Esse olhar abrangente vai qualificar a realização de pesquisas e diagnósticos para subsidiar ações que vão desde intervenções pontuais até a reestruturação da rede de transporte.
A criação, a inserção e a melhoria do sistema de informações e dados, de gerenciamento da operação do transporte público e da mobilidade urbana, tornam-se fundamentais. Dispor de informações que demonstrem a efetividade, não somente como meio de inclusão social e aquecimento da economia municipal, mas sobretudo como forma de aumentar o uso de um transporte coletivo de melhor qualidade, fortalecerá a mobilidade coletiva.
Ao mesmo tempo, para lidar com todas as questões aqui apresentadas, as cidades devem contar com instituições e recursos humanos adequados. A estruturação e o fortalecimento do órgão gestor são essenciais. A contratação e a capacitação de técnicos passam a ser ainda mais estratégicas em um contexto de transporte público gratuito.
Enfim, a compreensão das alterações e impactos provocados pela tarifa zero na mobilidade urbana é relevante. Os aspectos relacionados às questões de planejamento da rede de transporte e da operação demandam atenção. Tudo isso tem ainda maior repercussão nos casos de cidades médias e de grande porte, com sistemas de transporte público mais dinâmicos e complexos.