Não me chame pelo ‘Nome Morto’

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O título provocativo, curioso, que causa alguma perplexidade, em verdade tem por objeto tratar de assunto extremamente importante: transfobia e crime de racismo, inclusive pela precariedade das políticas públicas de saúde pública no atendimento a pessoas trans.

Necessário, antes, trazermos um contexto histórico jurisprudencial sobre transfobia e crime de racismo.

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Após seis sessões plenárias e quatro meses, o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019 concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 ajuizada contra a omissão do Congresso Nacional em legislar matéria referente a criminalização de práticas homofóbicas e transfóbicas.

Importante registrar que muitas críticas são feitas ao ativismo judicial praticado pela Suprema Corte, mas também é importante registrar que esse protagonismo reside na fundamentação de que “[o] Direito, a Constituição e o Supremo não podem ficar alheios às transformações, sob pena de assistirem passivamente a inocuidade das normas constitucionais ante o avanço dos fatos” (RE 595.676, ministro relator Marco Aurélio).

“Incriminar todas as formas de homofobia e de transfobia, em ordem a dispensar efetiva proteção jurídico-social aos integrantes da comunidade LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros)” foi matéria objeto desse protagonismo positivo realizado pelo STF, contrapondo-se a um freio de atraso que, maliciosamente ou não, era levado a efeito pelo Poder Legislativo.

Curiosamente, cabe destacar que o ministro relator Celso de Mello trouxe em seu voto não somente a certeza de que seria destratado, mas, também antecipou o conceito de hater, palavra tão comumente empregada nos dias de hoje para designar pessoas que criticam, desvalorizam e atacam indivíduos simplesmente pelo fato de não concordar com a opinião diversa, no caso, contra alguém que promovia a defesa das minorias e/ou grupos vulneráveis.

Daí que a omissão do Legislativo em promover a tipificação penal dos atos discriminatórios levados a efeito contra a orientação sexual ou identidade de gênero de pessoas estaria ferindo o dever constitucional de proteção à dignidade das vítimas, inconstitucionalidade essa que estaria inserida e/ou atraída à noção de racismo, buscando-se resolver, assim, o vácuo verificado na incompletude da tutela penal disciplinada pela Lei 7.716/89.

A paridade conceitual e interpretação conforme – reclamada para com os crimes de racismo – se somaria a condenação de “qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

Identidade, diversidade, reconhecimento próprio personalíssimo e sexualidade foram assuntos também abordados e analisados pelo voto condutor, que “evidenciam a centralidade que adquirem as noções de sexo, de gênero e de sexualidade na definição da orientação sexual e da identidade de gênero das pessoas”.

Aliás, na “abordagem jurisdicional” isso foi e é reconhecido pela “Carta de Princípios”, fruto de conferência realizada na Indonésia, em novembro de 2006, sob a coordenação da Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos. Destaco também o reconhecimento do direito à identidade de gênero e à orientação sexual pela interpretação realizada no Pacto de San José da Costa Rica

A liberdade e o poder fundamental de qualquer pessoa em dirigir sua vida foram amplamente reconhecidos contra práticas preconceituosas, tendo sido observado que a matéria macro fora examinada pelo STF em outras oportunidades e para questões relacionadas ao reconhecimento da união homoafetiva (ADI 4277 e ADPF 132) e alteração do prenome da pessoa transgênero (ADI 4275).

Feitas remissões à história da Coroa Portuguesa, à Igreja e a dados estatísticos de nossa época sobre as barbáries cometidas contra homossexuais e transgêneros, pontuou-se que o desrespeito “à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental”, sendo que a declaração de inconstitucionalidade por omissão resta caracterizada quando foram contrapostos o dever de legislar e a inércia do Estado em não entregar a prestação legislativa.

O absurdo residiria, ainda segundo o STF, no fato de que com mais de 30 anos de promulgação da Constituição Federal a matéria continuava sendo tratada como “terra arrasada”, sendo irrelevante o fato de que poucas propostas legislativas tramitavam no Congresso Nacional, a justificar a não omissão do Estado para o assunto, estando configurada:

“hipótese de mora inconstitucional, apta a instaurar situação de injusta omissão geradora de manifesta lesividade à posição jurídica das pessoas tuteladas pela cláusula constitucional inadimplida (CF, art. 5º, XLI e XLII), justifica, plenamente, a intervenção do Poder Judiciário, notadamente a do Supremo Tribunal Federal”.

Assim, diante da mora legislativa violadora da Constituição e à dignidade da pessoa humana foi que, conferindo-se “interpretação conforme à Constituição ao conceito de raça previsto na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, a fim de que se reconheçam como crimes tipificados nessa lei comportamentos discriminatórios e preconceituosos contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros)”, o STF proveu nesta parte a ADO ajuizada.

Não se pode deixar que a importância dessa decisão caia no esquecimento, pois o comando do STF não parece ainda suficiente para se identificar um cenário de diminuição dessas práticas criminosas, ou mesmo respeito para as individualidades e escolhas diversas pois, segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, 11.120 pessoas LGBTQIA+ foram vítimas de algum tipo de agressão em função da orientação sexual ou da identidade de gênero em 2022.

Considerando-se o cenário nacional de contínua violência e o internacional de desrespeito contra a liberdade e dignidade humana – cite-se os Estados Unidos pela prática de transfobia na emissão de passaportes e vistos (Ordem Executiva 1418) com a identificação limitada aos sexos masculino e feminino, em contrariedade ao gênero que a própria pessoa requerente se reconhece –, maior destaque há de ser feito para a necessidade de que a decisão do STF na ADO 26 seja constantemente revisitada e estudada, à exaustão, para que se compreenda a importância do respeito a diversidade e as escolhas individuais.

Esse reclame pela necessária e contínua revisitação à jurisprudência do STF tem por foco reclamar, ilustrativamente, atenção para a precariedade das políticas públicas de saúde destinadas à comunidade trans que, diante de constrangimentos já no não tratamento da pessoa pelo nome que ela se reconhece, não aceitação e resistência, exigem sejam reformuladas essas políticas públicas.

Tal reformulação deve obrigatoriamente passar pelas escolas de saúde (cursos de medicina, enfermagem, técnicos em radiologia etc.), pelo treinamento de profissionais das áreas meio (agentes de segurança, recepcionistas, faxineiros etc.), inclusão de diversidade, letramento (Pajubá), aconselhamento e aculturamento com o envolvimento da própria comunidade trans.

Não lançar tal olhar desconstrutivo, inclusive para outras situações de manifesto cometimento de crimes de transfobia, sedimentará o afastamento de pessoas trans, marginalizando-as ao não tratamento adequado de saúde, expondo-as a situações de risco de morte por omissão estatal.