A eleição judicial no México evidenciou uma preocupante mudança de rumo para a democracia eleitoral no mundo ocidental: o processo revelou-se como a primeira eleição não democrática organizada após a transição naquele país, em que nem mesmo o princípio básico de “uma pessoa, um voto” foi respeitado.
A escolha popular de todas as pessoas julgadoras deriva da controversa reforma judicial aprovada pelo Congresso mexicano em setembro de 2024 sob a batuta do então presidente Andrés Manuel López Obrador (Morena), no apagar das luzes do seu segundo mandato.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Este processo é único no mundo. Não há evidência empírica a ser tomada como referência para organizar uma eleição na qual mais de 3.423 pessoas competem por 886 cargos judiciais federais. As autoridades eleitorais se prepararam de forma apressada e, portanto, extremamente desorganizada. O resultado era previsível: um processo eleitoral sem equidade na disputa, sem concorrência efetiva, sem transparência e sem legitimidade.
Com a eleição judicial, o partido no poder lançou um ataque direto contra dois pilares fundamentais da democracia mexicana: o Instituto Nacional Eleitoral (INE) e o Poder Judiciário federal. Ao INE foi atribuída a tarefa de organizar a maior eleição de sua história, com menos de oito meses de preparação e apenas metade do orçamento originalmente solicitado.
Durante esse período, o INE teve que elaborar diretrizes e regulamentos para as campanhas, desenhar cédulas capazes de incluir entre 150 e 221 candidatos(as) (Observatório Judicial Eleitoral, 2025), delimitar distritos judiciário-eleitorais, além de contratar e capacitar pessoal adicional para o registro e contagem dos votos.
A falta de tempo na organização eleitoral resultou em falhas significativas que comprometeram a integridade das primeiras eleições judiciais. Por exemplo, a distritalização eleitoral favoreceu alguns estados e municípios em detrimento de outros, e cidadãos de distritos em estados como a Cidade do México puderam eleger um número maior de juízes, apesar de terem uma população menor que outras regiões.
As pessoas que foram às urnas receberam seis cédulas complexas, com mais de 150 nomes no total. Diante da impossibilidade de conhecer todas as candidaturas e como votar nelas, o INE fez um esforço institucional significativo para instruir a cidadania nesse exercício inédito — criou o portal Pratique seu voto —, já que é extremamente difícil memorizar entre 23 e 37 números para votar nos cargos disponíveis em uma determinada seção.
O partido Morena, que está no governo, também aproveitou essa oportunidade para mobilizar suas listas (“acordeones”), que se tornaram um golpe certeiro contra a integridade eleitoral. As listas do Morena continham os números e os nomes de pessoas próximas ao partido que estavam concorrendo.
Todas as candidaturas incluídas nas listas do Morena foram eleitas para a Suprema Corte, o Tribunal de Disciplina e a Sala Superior do Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário da Federação. Resultado que põe em xeque a imparcialidade e a capacidade contramajoritária destas instituições judiciais.
As eleições nas quais o Morena assumiu o controle do poder judiciário também se caracterizaram pela presença de urnas vazias. Para a Suprema Corte de Justiça da Nação, houve 87% de abstenção, com apenas 13% de participação eleitoral, dos quais 10,8% votaram nulo e 12% votaram em branco. Diante da complexidade da eleição, os eleitores que compareceram às urnas demoraram, em média, entre 12 e 25 minutos para exercer seu voto. O desconhecimento das candidaturas, a complexidade das cédulas ou o desacordo com essa eleição resultaram em uma quantidade de votos nulos e em branco superior à de qualquer outra eleição já organizada no México.
No caso da Suprema Corte, cada eleitor recebeu uma cédula com 64 candidatos, dos quais podia escolher nove. De acordo com a autoridade eleitoral, foram registrados cerca de 77 milhões de votos válidos. No entanto, muitos eleitores decidiram deixar em branco os campos de votação ou anular sua cédula, o que resultou em mais de 14 milhões de votos em branco e mais de 12 milhões de votos nulos, conforme mostrado no gráfico a seguir.
Gráfico 1: Votos pela Suprema Corte (2025)

Com a reforma judicial, ficou estabelecido que os assentos da Suprema Corte seriam ocupados pelas nove pessoas mais votadas na eleição. Nesse sentido, o gráfico anterior mostra que o candidato com o maior número de votos para integrar a Suprema Corte recebeu cerca de 6 milhões de votos, enquanto a nona candidatura obteve pouco mais de 3 milhões.
Como comparação, na última eleição organizada no México, em 2024, Claudia Sheinbaum foi eleita com mais de 35 milhões de votos. Isso permite dimensionar a diferença na magnitude do reconhecimento e apoio cidadão entre as candidaturas judiciais e a presidencial, o que pode ser interpretado como reflexo de diferentes níveis de informação, interesse e até mesmo legitimidade em relação aos diversos cargos em disputa.
A nova Suprema Corte é composta por perfis oriundos da militância do partido Morena e muito próximos ao ex-presidente López Obrador. Assim como ocorria na época em que o PRI governava, a chefe do Executivo agora conta com uma corte inteiramente formada por membros de seu partido.
A presidenta continua afirmando que a reforma judicial “era um mandato do povo” e foi feita para que “o povo” decidisse quem seriam os juízes e juízas. No entanto, como vimos, não apenas 87% da população se absteve de votar, como também o total de votos nulos e em branco superou o 23% da votação.
Votaram apenas as pessoas mobilizadas pelo Morena (60% delas adultos maiores), e a presidenta agora tem sua própria corte, como qualquer presidente priista do passado autoritário. Com esses resultados, não se pode negar que a nova corte é inteiramente partidária.
O que podemos esperar dessa corte? A evidência comparada na América Latina e em outras regiões do mundo mostra que cortes capturadas ou cooptadas pelo poder político tendem a emitir sentenças alinhadas com os interesses do Executivo ou das forças majoritárias. Em vez de atuarem como contrapeso institucional, tornam-se facilitadoras dos projetos de concentração de poder.
Um exemplo é o caso da Bolívia: quando Evo Morales perdeu o referendo em 2016, que lhe impedia de se candidatar a um quarto mandato, ele recorreu ao Tribunal Constitucional Plurinacional. Em uma decisão controversa, a corte invalidou o resultado do referendo e declarou que a reeleição indefinida era um “direito humano”, habilitando-o a concorrer novamente.
Outro caso emblemático é o da Nicarágua, onde a Suprema Corte de Justiça atuou durante anos como braço jurídico do regime de Daniel Ortega. Em 2009, a Câmara Constitucional da Corte permitiu a reeleição indefinida do presidente, apesar de a Constituição proibi-la expressamente. Assim como na Bolívia, o argumento foi de que a proibição violava os direitos políticos do presidente. Desde então, a corte tem respaldado diversas decisões que enfraqueceram a democracia e consolidaram um regime autoritário.
O governo do México, liderado pelo Morena, decidiu retomar o que durante muitos anos soube fazer com maestria: organizar eleições sem competição, sem equidade, em um sistema político sem divisão de poderes nem contrapesos. Em um contexto assim, onde as regras são moldadas a partir do poder e os órgãos autônomos são esvaziados de conteúdo, a justiça se transforma em uma extensão do poder político. A Suprema Corte, nesse cenário, deixará de atuar como guardiã da Constituição e contrapeso institucional para tornar-se mais uma engrenagem de um projeto de concentração de poder.