O primeiro processo estrutural concluído no STF

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Em 28.11.2024, publicamos neste JOTA artigo sobre como e quando encerrar um processo estrutural[1]. Na ocasião, reconhecemos como é desafiador concluí-lo. Afinal, processos estruturais têm por objeto uma situação de violação massiva e crônica a direitos fundamentais, decorrentes de ações, inações e dificuldades de coordenação entre diferentes atores, geralmente públicos.

A superação de tal situação é complexa, geralmente envolve a reformulação de políticas públicas voltadas à implementação dos direitos violados, a reestruturação de instituições e pode se alongar por muitos anos. Apesar dos desafios envolvidos, identificamos, então, dois pontos importantes para concluir um processo desse tipo.

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Primeiro, a função do processo estrutural é desbloquear o processo político: reconhecer a existência de um problema estrutural, fazer as partes dialogarem e planejarem conjuntamente uma resposta para o problema e assegurar o início da implementação da solução. Uma vez restabelecido o diálogo e consolidada a implementação de um plano de ação, está cumprida a missão do processo estrutural.

A partir de então, cabe às autoridades administrativas aperfeiçoarem continuamente a nova política pública, de modo a que possa se aproximar de um estado ideal de atendimento aos direitos. Alcançar tal estado ideal é missão do Poder Executivo.

Segundo, não basta que o processo estrutural acabe. É importante que seu encerramento ocorra de forma gradual e cuidadosa. Um fim abrupto ou precipitado do monitoramento pode colocar em risco os avanços obtidos. Devem-se estabelecer mecanismos que promovam a contínua melhoria da política pública, ainda que ausente o acompanhamento judicial.

Em maio de 2025, o STF conseguiu concretizar esses dois pontos no âmbito da Suspensão de Liminar (SL) 1696. Nesse caso, não só encerrou formalmente o seu primeiro processo estrutural, como estabeleceu os meios para a consolidação dos avanços obtidos no processo.

O caso

Trata-se da suspensão de liminar formulada, em 14.12.2023, pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que tinha por objeto decisão do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A decisão questionada na SL havia sustado os efeitos de determinação do juízo de primeira instância que estabelecia o uso de câmeras corporais nas operações destinadas a responder ataques praticados contra policiais militares. A SL buscava o restabelecimento das câmeras.

De fato, na origem, a Defensoria Pública e a associação Conectas Direitos Humanos ajuizaram ação civil pública em face do Estado de São Paulo, visando garantir o direito fundamental à segurança pública por meio de maior controle e transparência nas operações policiais. A ação civil pública foi proposta no contexto da Operação Escudo, conduzida pela Polícia Militar, a qual foi desencadeada após a morte de um soldado em uma incursão a comunidade na região da Baixada Santista.

Em 24.04.2024, o ministro Luís Roberto Barroso reconheceu o caráter estrutural do litígio e encaminhou a SL ao Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC) da Presidência do STF, para que acompanhasse o cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado de São Paulo. Na ocasião, o Estado de São Paulo se preparava para celebrar novo contrato tendo por objeto as Câmeras Operacionais Portáteis (COPs).

Até então, o modelo de gravação adotado em São Paulo era ininterrupto. Agora, a gravação deveria ser iniciada durante alguma ocorrência policial. Assim, havia a preocupação sobre possível retrocesso no nível de transparência da atividade policial e na proteção à população contra eventuais arbitrariedades. Em especial, o Núcleo deveria acompanhar: (i) a publicação do edital; (ii) a assinatura do contrato com o licitante vencedor; e (iii) a efetiva instalação e capacitação dos operadores.

Em decisão de 09.12.2024, constatou-se agravamento do cenário fático em relação à situação de dezembro de 2023. As informações trazidas aos autos apontavam: (i) falhas reiteradas no uso das câmeras no curso das operações, tais como o seu desligamento e a interrupção da captura de imagens; (ii) ausência de informações públicas sobre a política de acompanhamento das operações policiais; e (iii) limitações técnicas das novas câmeras contratadas, com funcionalidades incompletas para acionamento remoto automático e riscos de falhas operacionais.

Assim, o ministro Barroso determinou ao Estado de São Paulo: (i) o uso obrigatório de câmeras por policiais militares envolvidos em operações policiais, com a definição da ordem de alocação prioritária das outras COPs a partir de uma análise de risco de letalidade policial; (ii) a divulgação das informações referentes ao Programa Muralha Paulista de acompanhamento das referidas ações; e (iii) a manutenção do modelo de câmeras de gravação ininterrupta até que fosse comprovada a viabilidade técnica e a efetividade operacional dos métodos de acionamento das novas câmeras.

Em 14.04.2025, diante da complexidade técnica do tema e dos desafios relacionados à implementação da política pública em questão, o Ministro Presidente acolheu a pretensão do Estado de São Paulo e da Defensoria Pública de adotar postura dialógica, e encaminhou os autos ao Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL/STF). Após a realização de três audiências de conciliação, as partes chegaram a um acordo, homologado em 08.05.2025.

A conclusão do processo

Após meses de diálogo, duas visitas técnicas da assessoria do Ministro Presidente ao Estado de São Paulo, e três audiências de conciliação, as partes envolvidas chegaram a um acordo para encerrar o processo estrutural. O consenso alcançado foi resultado de atuação técnica e genuinamente colaborativa do Estado de São Paulo, da Defensoria Pública e do Ministério Público do mesmo Estado. Entre as medidas previstas no acordo, vale destacar:

  • Haverá aumento de 25% no número de câmeras, alcançando-se o total de 15 mil equipamentos. Com isso, serão atendidos todos os batalhões considerados de alta e média prioridade, conforme classificação de risco elaborada pelo Estado e apresentada às instituições envolvidas;
  • Serão implementadas funcionalidades nos equipamentos que permitirão o acionamento das câmeras de três formas: (i) pelos próprios policiais em serviço; (ii) de forma remota, pelo Centro de Operações da Polícia Militar; e (iii) de forma automática, com o uso da tecnologia bluetooth, para todos os policiais que estiverem a aproximadamente 10m do atendimento de uma ocorrência. Além disso, se a câmera for desligada durante uma ocorrência, haverá mecanismos de reativação automática, sem perda de imagens;
  • A Polícia Militar também fortalecerá seu sistema educativo e disciplinar, para promover uma cultura institucional de valorização do uso das câmeras. Além disso, as instituições envolvidas se comprometeram a atuar de forma conjunta para desenvolver indicadores de monitoramento da eficiência dessa política pública, que servirão de base para a publicação de relatórios de avaliação.

Com a homologação do acordo, o caso passará a ser acompanhado pela 11ª Vara da Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo, perante a qual já tramitava a ação civil pública que deu origem ao pedido de suspensão de liminar dirigido ao Supremo Tribunal Federal.

Aprendizados para os outros processos estruturais

Primeiro, o caso demonstra o potencial que o diálogo e a conciliação possuem para auxiliar no encerramento de processos estruturais. Como já ressaltamos, processos estruturais não têm o propósito de alcançar 100% da efetividade de implementação de direitos, mas sim de restabelecer as dinâmicas de diálogo necessárias para que tais direitos sejam implementados com maior efetividade pelas instâncias políticas. Isso significa que eles podem e devem ser encerrados mesmo que ainda existam déficits de implementação, desde que as circunstâncias indiquem que se alcançaram condições mínimas de funcionamento autônomo da via política no assunto. Caso contrário, tais processos jamais se encerrariam.

Dessa forma, para que os avanços obtidos não sejam revertidos, um acordo estrutural que detalhe como as reformas irão seguir, bem como indique mecanismos de transparência e controle, são essenciais.

Segundo, o acordo mostra a importância de confiar o monitoramento da política a instituições públicas não judiciais. No caso da SL, essas instituições são a Defensoria Pública e o Ministério Público. Em outras ações em curso no Tribunal, podem ser a Controladoria-Geral da União e o Tribunal de Contas da União.  Essa fase seria um meio termo entre monitoramento judicial e total autonomia do órgão que foi reestruturado. Em vez de um final abrupto, há uma retomada gradual da autonomia, a fim de garantir os avanços obtidos.

Terceiro, o STF decidiu delegar a competência para acompanhar a implementação do acordo ao juízo da 11ª Vara da Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. A delegação de competência no âmbito dos processos estruturais é pautada pela busca de maior eficiência. Nesse sentido, indica-se um magistrado ou Tribunal mais próximo da realidade discutida no processo, que possa acompanhar com cuidado a complexa fase de execução[2].

A ideia pode parecer muito inovadora. Mas na experiência de outros países com processos estruturais, como África do Sul[3], Argentina[4] e Colômbia[5], trata-se de técnica amplamente utilizada para garantir o cumprimento de decisões estruturais e acompanhar a implementação de planos de ação. No Brasil, a Constituição Federal, em seu art. 102, I, m, autoriza ao STF delegar competências para a prática de atos processuais na fase de execução.

Conclusão

A experiência na SL 1696 mostra como, por um lado, o Supremo Tribunal Federal pode contribuir para a proteção de direitos fundamentais cuja implementação depende do aperfeiçoamento de políticas públicas, sem, por outro lado, interferir excessivamente no processo político.

Expressa a preocupação do tribunal em buscar uma solução dialogada e retirar-se do processo assim que tal solução parece estar bem encaminhada, assegurados mecanismos de monitoramento que permitam a sua consolidação. Ela pode ser um primeiro precedente relevante e um meio de caminho valioso para conciliar proteção a direitos e separação de poderes.


[1] CASIMIRO, Matheus; NAVARRO, Trícia; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O processo estrutural no STF: quando e como encerrá-lo? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-processo-estrutural-no-stf-quando-e-como-encerra-lo. Acesso em: 09 jun. 2025.

[2] CABRAL, Antonio do Passo. Delegação de competência no processo estrutural. Suprema: revista de estudos constitucionais, v. 4, n. 1, p. 123-167, jan./jun. 2024. p. 140-141; VITORELLI, Edilson. Uma pauta de atuação estrutural do Supremo Tribunal Federal: por que, quando e como?. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, v. 4, n. 1, p. 253–297, 2024. p. 280.

[3] ÁFRICA DO SUL. Corte Constitucional. Pheko and Others v Ekurhuleni Metropolitan Municipality and Others (No 3). Johanesburgo, 2016. Disponível em: https://collections.concourt.org.za/bitstream/handle/20.500.12144/34630/Full%20judgment%20%20%28Official%20version%29%2026%20July%202016.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 fev. 2025.

[4] ARGENTINA. Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina. Beatriz Silvia Mendoza y otros v. Estado Nacional y otros. Buenos Aires, 2008. Disponível em: https://www.saij.gob.ar/corte-suprema-justicia-nacion-federal-ciudad-autonoma-buenos-aires-mendoza-beatriz-silvia-otros-estado-nacional-otros-danos-perjuicios-danos-derivados-contaminacion-ambiental-rio-matanza-riachuelo-fa08000047-2008-07-08/123456789-740-0008-0ots-eupmocsollaf. Acesso em: 24 fev. 2025.

[5] COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentencia de Unificación nº 020/22. Bogotá, 2022. Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2022/SU020-22.htm. Acesso em: 24 fev. 2025.