Se o regulador se desregula, todos perdem

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O mundo digital nos desafia a adaptar as ferramentas criadas para o mundo real, analógico. Em todos os campos estamos aprendendo a lidar com a crescente demanda de regular relações sociais e econômicas travadas no mundo virtual. Assim é com a telemedicina, a autenticação de documentos, o exercício da liberdade de expressão.

Igual ocorre com o tema do comércio eletrônico. O assunto ganhou destaque com a pretensão da Anatel de exercer fiscalização sobre os equipamentos de comunicação comercializados em plataformas de e-commerce. A aplicação de multas, ações de fiscalização em centros de distribuição e ameaças de retirada do ar de sites têm frequentado a mídia e o Judiciário.

O debate está um tanto desfocado. Tanto do ponto de vista do que cabe à agência como das medidas que pretende adotar.

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A Anatel tem suas importantes atribuições definidas na Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/1997). Desde logo se vê que a ela é reservada a “função de órgão regulador das telecomunicações”. Quando criamos a agência, lá nos anos 1990, conferimos a ela uma série de competências necessárias para atuar sobre as telecomunicações.

Assim ela regula as redes aplicadas às telecomunicações, as relações de consumo enredadas nestes serviços, ou o emprego de equipamentos ou sistemas integrantes das redes de suporte a estas atividades. Tudo dentro de sua função definida no art. 4º da lei. Isso não autoriza que ela passe a exercer atribuições a montante ou a jusante, adentrando setores ou atividades que não sejam, no seu cerne, telecomunicações.

A agência regula as redes que levam banda larga nas cidades. Mas isso não autoriza a determinar a distância entre os postes de distribuição de energia que lhes dão suporte.

É óbvio que a sua competência para certificar (art. 19, XIII) e fiscalizar (art. 156) os equipamentos e componentes de comunicação se volta estritamente a impedir que uma prestadora de serviços de telecom (sua regulada) empregue na sua rede componentes não certificados (art. 162, §2º).

Nada há na Lei Geral de Telecomunicações que dê competência para fiscalizar o comércio destes produtos. Se a prestadora empregar ou habilitar um equipamento sem certificação, poderá ser punida e deverá desconectar esse item. Mesmo nas normas infralegais (por exemplo o seu Regimento Interno), suas atribuições fiscalizatórias e de defesa do consumidor se limitam ao setor regulado. Não envolvem as cadeias econômicas adjacentes.

Mesmo desconsiderados os limites das competências da agência, as medidas cogitadas são descabidas.

O Marco Civil da Internet, no seu art. 19, não confere uma imunidade absoluta às plataformas sobre tudo aquilo que nelas é postado. Porém deixa claro que inexiste uma responsabilidade objetiva integral sobre o que nelas circula. O que a Anatel está a pretender das plataformas de e-commerce é uma responsabilidade objetiva sobre todos os produtos que nela são anunciados. Pior: baseada no risco integral, que exigiria um crivo prévio sobre toda uma miríade de comerciantes e uma infinidade de produtos.

O ministro Alexandre de Moraes tem defendido em doutrina e em julgados que “o que vale para o mundo real deve valer para o mundo virtual”. A regra cai perfeitamente aqui.

Recorramos a um exemplo do mundo real. A ECT presta serviço público. Tem, portanto, responsabilidade objetiva com base no art. 37, §6º, CR. E ninguém a responsabilizaria por um usuário postar por Sedex um medicamento não registrado na Anvisa que venha a fazer mal à saúde do destinatário. Igualmente a direção dos Correios não será responsabilizada criminalmente se, desavisadamente, entregar um entorpecente bem escondido dentro de uma correspondência.

A comercialização episódica de equipamentos sem certificação em uma plataforma de e-commerce não é causa para a aplicação de pesadas sanções, quanto mais para a suspensão completa do site. Sanções mais gravosas poderiam ser admitidas, por exemplo, com relação a plataformas que dão acesso a conteúdo autoral sem autorização, que se prestam abertamente para a prática de crimes, que comercializam dados pessoais confidenciais ou ainda sites de apostas esportivas não autorizados.

Não parece ser isso o que ocorre com os marketplaces. Os dados disponíveis, inclusive fruto da fiscalização da própria Anatel, evidenciam que tais ocorrências, quando verificadas, são pontuais e irrelevantes ante o volume de bens comercializados pelas plataformas.

Se as ações já praticadas pela agência não têm suporte legal, a ameaça de derrubar sites é temerária e desproporcional.

Voltemos ao paralelo com o mundo real. Se um shopping center tem entre suas lojas um comércio que vende um produto sem origem comprovada, não se cogita que a autoridade competente feche o shopping.

A menos que comprove que aquele centro se organiza em torno especificamente do comércio ilícito, a conduta desejável é a notificação, com identificação específica dos produtos reputados irregulares, informando que aquela loja incorre no ilícito. Multar a empresa a priori por comportamento de terceiro pressuporia uma responsabilidade objetiva amplíssima, a que nem o prestador de serviço público se submete

Mais do que desproporcional, a ameaça de derrubada de marketplaces é temerária. Em algumas oportunidades esta medida drástica sobre plataformas digitais foi necessária para impedir a prática reiterada de ilícitos reconhecidos pela autoridade judicial e de modo a reafirmar a autoridade da jurisdição. Como nos casos de insistência em permitir a circulação de desinformação em redes sociais. Vulgarizar tal medida, apenas para emular competências inexistentes, será um desserviço para o país.

O combate ao crime exige inteligência e cooperação. Nestes quase 30 anos, a Anatel se firmou pelo compromisso com a boa regulação, ponderada, racional e motivada. As providências brandidas no Despacho Decisório 5.657/2024 não correspondem a essa trajetória. O mundo digital não pode ser terra de ninguém. Mas também não pode ser lugar onde o xerife faz a lei.