STJ analisa falência que pode colocar em xeque ambiente empresarial

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Está para análise da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob relatoria do ministro Marco Buzzi, um processo de falência cujo impacto pode ir muito além das partes diretamente envolvidas. Em pauta, está a legalidade do procedimento falimentar da Buritirama Mineração S.A – maior mineradora de manganês da América Latina – cuja principal controvérsia é o descumprimento de etapas essenciais do devido processo legal, no que tange à forma como se deu a intimação do protesto que ocasionou a falência.

Corre-se o risco de abertura de um perigoso precedente que pode colocar em xeque a segurança jurídica do ambiente empresarial no Brasil, notadamente quanto às empresas em crise.

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A empresa, embora tenha tido sua falência decretada em 2023, continua em funcionamento, demonstrando a relevante função social que exerce. Pelo regramento brasileiro, a falência deve ser compreendida como medida extrema, utilizada apenas quando esgotadas todas as possibilidades de regularização, o que deve ser tentado dentro dos parâmetros legais pelo Judiciário, antes do decreto falimentar, sob pena de descumprimento de princípios basilares da Lei 11.101/2005 como o da “preservação da empresa”.

Por isso, o legislador impôs um conjunto rigoroso de formalidades processuais que devem ser cumpridas para que o pedido de falência seja admitido. Uma das mais relevantes é a necessidade de que o protesto de título seja devidamente comunicado à empresa — por meio de intimação pessoal, com identificação da pessoa que a recebeu, conforme estabelece a Súmula 361 do próprio STJ.

Mais do que uma exigência burocrática, a necessidade de identificar a pessoa que recebe a intimação tem uma função essencial: garantir que a empresa tenha ciência da situação e possa tomar providências antes de ser surpreendida. O STJ já deixou claro em precedentes anteriores que essa exigência subsiste, inclusive, em casos de intimação por edital.

A pandemia de Covid-19 trouxe ainda mais complexidade a esse cenário, considerando que a maioria das empresas passou a operar em regime de home office, sem contar a sensação de incerteza quanto ao futuro que a pandemia gerou no ambiente administrativo e empresarial.

Nesse contexto, o Provimento 97/2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), assinado pelo ministro Humberto Martins, então corregedor nacional de Justiça, passou a autorizar a utilização de intimações de protesto por meios eletrônicos e aplicativos de mensagens. Provimento este que teve suas disposições incorporadas, em seguida, ao artigo 14, da Lei de Protesto de Títulos, evidenciando que, para além de medidas voltadas ao período pandêmico, são medidas modernas e que encontram fundamento de validade também na lei de insolvência, em corolário ao princípio da preservação de empresa viável.

No caso da Buritirama, foram duas tentativas físicas de intimação da empresa em 2022, tendo sido certificado na última que os funcionários estavam em trabalho remoto devido à pandemia. Sete dias depois, sem qualquer nova tentativa de intimação pessoal, partiu-se diretamente para a intimação via edital. A ausência de tentativas por canais eletrônicos, ou outros meios, à época, é uma omissão processual grave. Afinal, os mecanismos legais e tecnológicos estavam disponíveis e foram ignorados.

A manutenção de uma intervenção judicial com base em um protesto por edital em que não se esgotaram os meios de intimação pessoal contraria não apenas a legislação e a súmula vinculante da Corte, como também a própria lógica do sistema falimentar brasileiro, que visa preservar a empresa sempre que possível.

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No caso da Buritirama, a forma como se deu a intimação do protesto obstou, inclusive, que a empresa apresentasse pedido de recuperação judicial – fato que ocorreu três dias após o decreto falimentar.

Conforme prega o renomado especialista em Direito da Insolvência e professor da PUC-SP, Daniel Carnio, a interpretação das normas deve superar o antigo dualismo entre credores e devedores. “Deve-se buscar sempre a realização do emprego, do recolhimento de tributos, do aquecimento da atividade econômica, da renda, do salário, da circulação de bens e riquezas, mesmo que isto se dê em prejuízo do interesse imediato da própria devedora ou dos credores”, destaca Carnio em seu texto Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação dualismo pendular e gestão democrática de processo.

A falência, portanto, deve ser aplicada apenas quando a empresa não for mais capaz de gerar benefícios econômicos e sociais. Uma empresa não é apenas um CNPJ. Ela representa empregos, salários, fornecedores, tributos e circulação de riqueza. Ao decretar sua falência, todos esses elos são impactados.

Permitir que protestos realizados sem esgotar todos os meios para a devida intimação pessoal é abrir um precedente que transforma um instrumento de exceção, como a intimação por edital, em mecanismo de coerção para cobrança de dívidas. Isso pode comprometer a segurança jurídica de milhares de empresas em crise. Ter no processo o registro do nome da pessoa que recebeu a intimação não é apenas uma formalidade cartorial, mas uma oportunidade para proteger a integridade de todo um sistema, e de reafirmar que o devido processo legal é pilar inegociável do Estado de Direito.