Arbitragens com o Poder Público em queda?

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A arbitragem envolvendo o Poder Público cresceu de forma constante no Brasil, em especial a partir de 2013 – e esse aumento parecia irreversível. Entretanto, dados recentes revelam um movimento de forte queda a partir de 2022, o que levanta dúvidas sobre as causas e os desdobramentos desse fenômeno.

Ao longo de dez meses, um grupo de pesquisa formado por alunos do PPGD da FGV Direito Rio, sob a coordenação de Eduardo Jordão, Soraya Maurity, Nilo Gaião Santos e Lucas Thevenard, realizou um mapeamento de 55 arbitragens envolvendo a administração direta e as agências reguladoras federais, bem como a dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.

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Desse total, 37 arbitragens ocorreram no âmbito federal, 15 no estado de São Paulo e 3 no estado do Rio de Janeiro. O estudo, publicado recentemente pela Editora JusPodivm na forma de livro, oferece uma base empírica que permite identificar padrões, ciclos e potenciais pontos de inflexão na prática da arbitragem envolvendo o Poder Público.

Para analisar a distribuição das arbitragens, foi elaborada uma linha do tempo com base no número de arbitragens instauradas por ano e por unidade federativa.[1] Os dados revelaram um crescimento consistente no número absoluto de arbitragens, especialmente a partir de 2013, com um incremento relevante (e esperado) após a edição da Lei 13.129/2015. O pico dessa trajetória ocorreu em 2021, ano em que foram instauradas 11 arbitragens, o maior número registrado ao longo da série histórica.

Três principais marcos ajudam a explicar o crescimento das arbitragens entre 2013 e 2021. Primeiro, o período coincide com a tramitação do Projeto de Lei do Senado 406, de 2013, que resultou na promulgação da Lei 13.129, de 26 de maio de 2015.

A edição da norma superou a discussão acerca da arbitrabilidade subjetiva da Administração Pública, isto é, se a Administração Pública poderia ser parte de uma arbitragem.[2] Embora antes disso houvesse entendimentos no sentido da viabilidade jurídica, o artigo 1º, § 1º deixou claro que a Administração Pública pode submeter à arbitragem disputas envolvendo “direitos patrimoniais disponíveis”.

Segundo, em 10 de novembro de 2017, a 1ª Seção do STJ exarou uma relevante decisão nos autos do Conflito de Competência 139.519, que dizia respeito à delimitação geográfica de um campo de petróleo no âmbito de um contrato de concessão celebrado entre ANP e Petrobras.

Em síntese, o STJ entendeu que a arbitrabilidade objetiva da controvérsia deveria ser primeiro decidida pelos árbitros, em atenção ao princípio da competência-competência. Mesmo assim, o STJ acabou avançando na análise da questão jurisdicional, afirmando que a disputa se enquadrava no conceito legal de “direitos patrimoniais disponíveis”.

Embora esse não tenha sido o primeiro julgado da corte sobre arbitragem com o Poder Público, nem o primeiro em que se adotou posição favorável ao instituto, a sensibilidade da matéria em disputa e as circunstâncias que envolveram a própria tomada de decisão transformaram o acórdão em um verdadeiro leading case pró-arbitragem.

Terceiro, a edição da Lei 13.448/2017 e do Decreto Federal 10.025/2019 também ampliou a segurança jurídica em torno do instituto. A lei federal, que trata da relicitação em contratos públicos do setor de transportes, expressamente adotou a arbitragem como meio obrigatório de solução de conflitos. Já o decreto traz disposições detalhadas sobre o uso da arbitragem pela administração federal, endereçando questões-chave como limites da arbitrabilidade objetiva, credenciamento de câmara e forma de execução de sentenças condenatórias.

Embora seu foco explícito seja o setor de transporte, fato é que o Decreto Federal 10.025/2019 reflete a posição institucional da administração sobre vários temas e acaba possuindo um impacto transversal no uso da arbitragem em outros setores de competência federal.

A partir de 2022, contudo, os dados indicam um movimento de queda: apenas 2 arbitragens naquele ano e 1 em 2023, totalizando 3 procedimentos em dois anos. Embora já fora do espaço temporal considerado pela pesquisa, informações extraoficiais obtidas por Nilo Gaião Santos indicam a abertura adicional de apenas 5 arbitragens no âmbito federal, além de 1 no estado de São Paulo e 1 no estado do Rio de Janeiro durante os anos de 2024 e 2025, em conjunto.

Mesmo com esses novos casos, o número acumulado permanece inferior ao verificado entre 2013 e 2021, apontando uma possível inflexão ou desaceleração no uso da arbitragem em face do Poder Público.

Não há, contudo, evidências de mudanças institucionais diretas capazes de justificar, por si sós, esse arrefecimento: não houve qualquer reforma legislativa ou jurisprudencial que limitasse o acesso ao instituto arbitral. O fenômeno, portanto, pode ter motivações mais difusas ou conjunturais.

O ponto foi discutido após apresentação de Eduardo Jordão em seminário realizado no XVII Congresso Brasileiro de Direito do Estado, promovido pelo professor Paulo Modesto, em Salvador, na semana retrasada, oportunidade em que foram levantadas algumas hipóteses por especialistas que lidam com o tema na prática.

Uma delas é a da substituição da arbitragem por novos mecanismos consensuais, especialmente a Secex-Consenso,[3] criada no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU) no final de 2022. Essa unidade passou a fomentar ativamente a resolução consensual de conflitos entre administração e concessionárias, muitas vezes com celeridade superior à via arbitral e com custos sensivelmente inferiores.

Na ocasião, o procurador Júlio Marcelo de Oliveira (MPTCU) sugeriu que essa explicação talvez não seja suficiente: a Secex-Consenso só se consolidou no fim de 2022, e, já naquele ano, os números de arbitragens haviam despencado.

Outra hipótese, aventada por Egon Bockmann Moreira, também presente ao Congresso, é que o novo ciclo político inaugurado em 2023 pode ter provocado uma espécie de “pausa estratégica” por parte de concessionárias. Em vez de judicializar ou instaurar arbitragem, muitos agentes econômicos teriam preferido esperar para ver como o novo governo se posicionaria diante dos conflitos, apostando em canais diretos de diálogo e edição de novas normas para solucionar os litígios em curso. Esse tipo de espera ativa é comum na prática regulatória e pode explicar parte do declínio observado.

Há ainda uma terceira hipótese, também levantada por Egon Bockmann Moreira: a de um “esgotamento do estoque”. Após a edição da Lei 13.129/2015, muitos conflitos antigos que estavam represados – justamente por incertezas quanto à arbitrabilidade – puderam finalmente ser submetidos ao juízo arbitral. Esse movimento pode ter gerado uma profusão de demanda concentrada entre 2015 e 2021, sendo natural que, uma vez resolvidos, o fluxo de novas arbitragens passe a refletir apenas os litígios efetivamente novos – o que implicaria um ritmo mais constante e moderado.

Outra hipótese a ser considerada é a de que a percepção de vantagem estratégica da parte privada na arbitragem em face do Poder Público pode ter se alterado. Em outras palavras, não parece ser mais fácil “ganhar” do Poder Público na via arbitral, do que na via judicial, como alguns esperavam.[4] Assim, o seu custo elevado e a ausência de uma vantagem decisória clara frente à Administração podem ter levado alguns atores a reavaliar sua utilidade prática, sobretudo em disputas com alto grau de incerteza ou baixa margem de ganho esperado.

Independentemente da causa, a queda no número de arbitragens apresenta uma questão prática relevante para a advocacia pública e privada: qual a melhor estratégia diante de um conflito com a Administração Pública?

Recorrer diretamente à arbitragem ainda permanece uma estratégia juridicamente consistente – sobretudo nos casos em que há cláusula compromissória previamente pactuada e o litígio envolve matérias de elevada complexidade técnica ou econômica.

No entanto, a consolidação institucional de mecanismos consensuais, como a Secex-Consenso, no âmbito federal, e a Câmara Administrativa de Soluções de Controvérsias (CASC), no estado do Rio de Janeiro,[5] bem como o surgimento de iniciativas correlatas em outras esferas administrativas, com base, inclusive, no artigo 26, da LINDB, vêm tornando cada vez mais atrativa a via negocial.

Diante desse cenário, delineiam-se algumas estratégias advocatícias possíveis:

  1. buscar previamente a mediação ou negociação extrajudicial, antes da instauração do procedimento arbitral;
  2. instaurar a arbitragem prevendo a possibilidade de suspensão consensual para tratativas negociais; e
  3. submeter inicialmente o conflito a instâncias de autocomposição, como a Secex-Consenso e a CASC, e, apenas diante da frustração da tentativa conciliatória, recorrer à arbitragem.

Essa última alternativa, contudo, deve ser avaliada com cautela, pois um insucesso anterior em sede administrativa pode debilitar a posição da parte na arbitragem subsequente, tanto do ponto de vista jurídico quanto estratégico.

A arbitragem continua sendo um instrumento de grande relevância para a resolução de controvérsias envolvendo o Poder Público, mas, hoje, compartilha espaço com mecanismos alternativos de solução de controvérsias que, a depender das circunstâncias, podem revelar-se mais eficazes – ou, ao menos, mais oportunos.

Assim, cabe ao operador do direito desenvolver sensibilidade institucional para identificar a via mais adequada a cada caso, considerando não apenas a robustez jurídica, mas também os aspectos políticos, econômicos e reputacionais envolvidos.


[1] Há um grupo de 6 arbitragens classificadas como “ND” (Não Determinado), cuja data de início não pôde ser identificada devido a restrições de sigilo. Esse conjunto inclui 3 arbitragens federais, 2 em São Paulo e 1 no Rio de Janeiro.

[2] Conforme descrito na seção 1.1.

[4] Os dados empíricos da pesquisa também mostram que não há um padrão de “vitórias” majoritárias da iniciativa privada. Ao contrário, os resultados indicam uma distribuição relativamente equilibrada – com grande vantagem do Poder Público na esfera federal.

[5] A CASC foi inicialmente instituída pelo Decreto nº 45.590, de 4 de março de 2016, e, em seguida, pelo Decreto nº 46.522, de 10 de dezembro de 2018. O instituto também ganhou disciplina legislativa pela promulgação da Lei estadual nº 9.629, de 2022, que dispõe sobre a autocomposição no âmbito estadual e sobre a Câmara Administrativa de Solução de Controvérsias – CASC, de que trata o decreto estadual nº 46.522/2018.