Como as disputas pela soberania digital atravessam a política de dados brasileira?

  • Categoria do post:JOTA

No Brasil, não existe uma política tecnológica integrada a uma política econômica. Nos últimos anos, a governança da tecnologia internacional consolidou-se como um dos principais campos de disputas, extrapolando os limites do mercado e se infiltrando na geopolítica.

Assim, foi possível que os Estados Unidos e a China emergissem como grandes polos dominantes na hegemonia tecnológica, enquanto a União Europeia, carente de gigantes digitais equivalentes, optou por projetar seu poder através da regulação. Dessa forma, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) se tornou um sofisticado instrumento de soft power[1], exportando princípios e práticas que passaram a orientar legislações, como a LGPD no Brasil.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

O crescimento dos mercados mundiais com a transnacionalização da economia minou a capacidade do Estado para sua regulação ao nível nacional, conduzindo a um esvaziamento do protagonismo do Estado-nação como ator no sistema global. Nos vazios jurídicos abertos pelos mercados financeiros se inseriram organizações de outro tipo[2].

É possível observar as big techs (empresas como Amazon, Google, X, Meta, Microsoft, entre outras) atuando como verdadeiros Estados paralelos na tentativa de interferir em decisões internas. Embora sejam formalmente organizações privadas, elas buscam finalidades públicas[3]. Por sua vez, o Brasil acumula um longo atraso no domínio dos dados gerados por sua sociedade e na construção dos data centers necessários para armazená-los, tratá-los e empregá-los em benefício da população.

Está em curso, há anos, um debate sobre o tema, mas no último dia 4 de maio o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, precipitou um movimento que pode tornar o país ainda mais dependente das big techs e dos Estados Unidos com a proposta de medida provisória que será encaminhada[4].

A proposta original construída pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) – desde o ano passado – incluía o estímulo à entrada de capitais e tecnologia estrangeiros a partir da instalação de novos data centers e da atualização dos já em operação no Brasil[5]. Contudo, suas condições preservavam a soberania e o desenvolvimento da economia digital do país, e não em priorizar os EUA.

Os dados estratégicos seriam mantidos em data centers públicos, controlados pelo Estado e continham medidas de simplificação regulatória. Buscava-se evitar que, nas transformações tecnológicas em curso, o Brasil figurasse apenas como fornecedor de recursos naturais abundantes, dados e incentivos fiscais. Também estimulava-se que empresas brasileiras, que já mantêm data centers e oferecem serviços de nuvem (como a Magalu Cloud[6]), pudessem se modernizar.

No entanto, o Brasil não possui uma política de dados ou uma política de incentivo para construção de infraestruturas nacionais, soberanas e públicas. Até o momento, o país se mantém como um território de passagem e extração de recursos. Isso parte das políticas de sucateamento, com visões neoliberais que tomaram conta do setor público nos últimos anos.

Logo, o que vemos são autoridades com visões de que o desenvolvimento tecnológico não pode estar nas “mãos” do Estado. No entanto, o governo federal precisa agir em defesa da soberania dos dados – que se refere ao controle nacional sobre a coleta, armazenamento, uso e jurisdição desses dados – investindo em código aberto, software livre e infraestrutura local (data centers, redes de telecomunicações), reduzindo a subordinação a atores globais.

O controle sobre os data centers e os dados que neles circulam é exercido de duas maneiras. A propriedade destas estruturas está nas mãos de um oligopólio de corporações norte-americanas, além de haver leis extraterritoriais, como o Cloud Act[7], que permite aos EUA requisitar dados que circulem ou estejam armazenados em qualquer empresa com sede no país. Isso significa que, se a Polícia Federal brasileira usar Amazon Web Services, investigações sigilosas podem ser requisitadas por agências como o FBI, o que inviabiliza a LGPD, pois a localização física dos dados não garante controle jurídico.

Como em todas as discussões de desenvolvimento nacional e industrial, países do Sul Global chegaram a uma encruzilhada onde precisam fazer uma escolha. Podem continuar afiliados ao modelo colonialista vigente ou optar por desenvolver autonomia tecnológica e econômica que possa, a médio prazo, criar condições de uma autodeterminação digital mais soberana. Diferentemente de outros momentos, o gap tecnológico não é uma barreira intransponível.

Ao contrário do mercado de semicondutores (que exigem altíssimo capital e know-how), o Brasil já tem comunidades de software livre, empresas de TI e capacidade técnica para desenvolver alternativas (como a Serpro, Dataprev, startups nacionais). Em termos de infraestrutura, também é possível construir data centers e sistemas de computação em nuvem que partam de investimentos públicos e privados com capital e fundos públicos nacionais. Como já temos um país conectado pelas redes de telecomunicações de forma massiva (fibra óptica, 5G), as condições de nosso ecossistema digital estariam postas, falta integrá-la a uma estratégia de soberania de dados.

Foram precisamente dois atores políticos (as big techs e o Estado norte-americano) que o ministro Haddad escolheu para seus parceiros preferenciais. Ao priorizar big techs, o governo aprofunda a dependência, ignorando alternativas como a Serpro (nuvem governamental brasileira) ou parcerias Sul-Sul, como o uso de nuvens chinesas ou europeias com menos submissão ao Cloud Act. Vale lembrar que o aluguel de espaço nos data centers destas empresas é pago em dólares e gera déficit expressivo na balança comercial, junto à perda de soberania e capacitação.

Portanto, não se trata de banir empresas do país, mas de construir mercados digitais com oportunidades para todos, sem entregar nossos ativos digitais estratégicos.


[1] EUROPEAN UNION. General Data Protection Regulation. 2016. Disponível em: https://gdpr-info.eu/. Acesso em: 08 maio. 2025.

[2] ESPOSITO, R. Instituição. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

[3] Idem.

[4] GOVERNO FEDERAL. Haddad apresenta plano de crescimento sustentável e anuncia Política de Data Centers em conferência nos EUA. Ministério da Fazenda, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/Maio/haddad-apresenta-plano-de-crescimento-sustentavel-e-anuncia-politica-de-data-centers-em-conferencia-nos-eua. Acesso em: 08 maio. 2025.

[5] GOVERNO FEDERAL. Estratégia para Implementação de Política Pública para Atração de Data Centers. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, 2024. https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/comercio-e-servicos/comercio/estudo_completo_datacenters_jun2023.pdf/view. Acesso em: 08 maio 2025.

[6] MAGALU CLOUD. Disponível em: https://magalu.cloud/. Acesso em: 08 maio 2025.

[7] ESTADOS UNIDOS. CLOUD Act Resources. U.S. Department of Justice. 2018. Disponível em: https://www.justice.gov/criminal/cloud-act-resources. Acesso em: 08 maio 2025.