Levando em conta tudo o que tem sido escrito nos últimos tempos sobre a possibilidade (ou não) e os limites da concessão de anistia aos envolvidos nas infames ações contra as instituições democráticas e o Estado de Direito ocorridas em 8 de janeiro de 2023 e outras da mesma natureza, poder-se-ia afirmar que tudo o que de relevante existe sobre o tema já foi dito e escrito.
Ocorre que, ainda que isso fosse verdadeiro e nada de novo se produzisse, o tema e os respectivos problemas e desafios seguem atuais e relevantes, sem contar o fato de que há coisas que devem ser reiteradas e lembradas sempre que possível, sob pena de se perderem ao longo do tempo e recaírem no esquecimento, quando se sabe que um dos maiores pecados da humanidade é não lembrar do e não aprender com o passado.
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Nesse sentido, antes de avançar, é o caso de destacar recente obra publicada sob o título Anistia a atos antidemocráticos no Brasil: Limites jurídicos e proteção do Estado de Direito, organizada pelos professores Marcelo Labanca Corrêa de Araújo, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira e Glauco Salomão Leite, publicada pela Editora Publius, em formato PDF de acesso aberto, e integrada por uma plêiade de renomadas (os) juristas[1], cuja leitura se revela imprescindível e, dada a relevância da matéria, até mesmo cogente.
Aliás, não deixa de soar ao menos estranho o fato de que a proposta de anistia atualmente em curso esteja sendo engendrada por setores do Poder Legislativo (no caso, do Congresso Nacional), o principal pilar do Estado Democrático de Direito, precisamente o alvo principal das ações (e omissões) que têm sido investigadas, processadas e julgadas e objeto de tanta polêmica.
Além disso, não é de se estranhar menos que a lei na qual se fundam os processos referidos e que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) foi em parte elaborada pelos mesmos que agora a querem neutralizar.
Uma das questões que chama a atenção no debate que está sendo travado é a tentativa de justificar a concessão de anistia mediante uma comparação com a legislação que anistiou os envolvidos em crimes praticados por ocasião do regime militar instaurado com o golpe de Estado de 1964. Tal comparação não é apenas equivocada como ilegítima, porquanto se trata de contextos históricos completamente distintos, ao que se soma, entre outros argumentos, o fato de que hoje se está sendo regido por uma nova ordem jurídico-constitucional, que claramente é democrática e veda, de modo expresso e implícito, que se premie quem contra ela atenta.
Além disso, existem no direito brasileiro outros delitos insuscetíveis de graça ou indulto, bem como crimes tidos pela própria Constituição como imprescritíveis, o que apenas reforça o ponto de vista aqui advogado, lembrando-se, ademais, que mesmo o poder de indultar do presidente da República, igualmente legitimado pelo voto popular, não é e nem poderia ser absoluto, até mesmo pelo fato de poder absoluto e democracia não serem categorias conciliáveis.
Nesse contexto, indispensável rememorar que os incisos 43 e 44 do artigo 5º da Constituição por si só já deveriam ser suficientes para justificar do ponto de vista constitucional a proibição da anistia ora pretendida, já que, de acordo com o inciso 43, “a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”, ao passo que conforme o referido inciso 44, “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação armada de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Note-se que a própria Lei 14.197/2021, que tipifica os crimes contra o Estado Democrático de Direito, prevê que tais delitos não podem ser anistiados, concretizando, portanto, na esfera infraconstitucional, a vedação prevista pelo constituinte de 1988.
Note-se, outrossim, que a proibição constitucional implícita (dada a inexistência de dispositivo que direta e expressamente a proíbe) da anistia implica desde logo a necessária declaração de inconstitucionalidade de toda e qualquer medida naquele sentido, ainda que aprovada fosse (o que se afirma aqui apenas em tese e pelo amor à argumentação) pela integralidade dos congressistas.
Em prol do reconhecimento de uma vedação constitucional implícita da anistia, é de colacionar a lição de Lenio Streck, que, em texto publicado na obra acima referida, rejeita o argumento daqueles que afirmam que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição não proíbe, demonstrando, do ponto de vista hermenêutico, que aceitar tal tese equivaleria dizer “que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não dizer algo sobre o tema, pode aprovar qualquer tipo de lei”, referindo o precedente do indulto conferido a Daniel Silveira, que foi tido pelo STF como constitucionalmente ilegítimo.
Além disso, como bem anota André Rufino, também em contribuição para a obra coletiva referida, em passagem que aqui se toma a liberdade de transcrever, a CF, “ao conceder atribuições políticas excepcionais ao Congresso, estabelece ao mesmo tempo as regras do jogo constitucional, fixando os parâmetros para a validade formal e material de todas as jogadas na prática política. Entre os parâmetros de validade formal, encontram-se, por exemplo, as exigências normativas para os processos legislativos. Nos parâmetros materiais, estão tanto os princípios que fundamentam a democracia constitucional, especialmente os direitos fundamentais, quanto as normas informais que direcionam as práticas constitucionais para a construção democrática da harmonia entre os poderes”.
Ainda nessa toada, é possível afirmar que a vedação da anistia para todos os envolvidos nos atos de janeiro de 2023 e outros atentados contra as instituições democráticas opera como garantia da democracia e não deixa de ser, sob determinado ângulo, uma manifestação daquilo que se tem designado de uma democracia combativa ou militante, ou então de uma democracia defensiva, expressões que, a despeito de alguns importantes elementos em comum, não têm exatamente o mesmo sentido, o que, contudo, aqui não será desenvolvido.
Os argumentos esgrimidos contra as propostas de anistia que tramitam no Congresso Nacional de longe não se esgotam nos acima referidos, de tal sorte que vale agregar alguns que soam particularmente persuasivos.
Como o PL 2858/2022, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PL-GO), que foi proposto no mês seguinte ao pleito eleitoral de 2022 e pretendia retroagir a 30 de outubro daquele ano. A proposta de anistia, de acordo com Andrea de Albuquerque Reginato e Gabriela Maia Rebouças, acabou servindo de estímulo para atos golpistas, além de poder ser considerada parte integrante da tentativa de golpe (v. novamente a obra acima citada).
Já para João Paulo Allain Teixeira, igualmente no seu contributo para a obra referida, na justificativa do projeto apresentado pelo deputado Major Vitor Hugo, existe uma contradição lógica insuperável: ao mesmo tempo em que para o autor do PL os atos praticados após as eleições são manifestações legítimas de cidadãos indignados com o resultado, não se tratando de crimes, não faz sentido anistiar aquilo que ilícito não é.
As razões invocadas de longe não esgotam o manancial argumentativo que tem sido endereçado contra as propostas de anistia dos atos antidemocráticos e golpistas praticados especialmente desde as eleições de 2022, mas são mais do que suficientes para dar conta da substancial e manifesta inconstitucionalidade da anistia pretendida.
Espera-se, contudo, que o movimento da anistia engendrado no Congresso lá mesmo acabe sendo sepultado, ainda que por razões de autodefesa. Não se deve esquecer que o próprio Legislativo foi alvo de agressões e promover a anistia equivale, ao fim e ao cabo, a uma espécie de – pelo menos potencial – pacto suicida.
Além disso, há que ter confiança de que a maioria dos legisladores tem plena consciência da ilegitimidade constitucional da anistia e de que irão honrar a sua condição de principais baluartes da democracia. Caso isso, todavia, não venha a ocorrer, o Supremo Tribunal Federal certamente não deixará de cumprir com a sua missão de guardião da ordem constitucional, o que, aliás, tem sido o caso desde que a corte, juntamente com o Tribunal Superior Eleitoral, exerceu papel crucial ao assegurar a regular realização das eleições de 2022, já sob fogo cerrado.
[1] Acesso à obra em https://drive.google.com/file/d/