Na Recomendação 123/2022 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instou todos os órgãos do Poder Judiciário à “observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas”.[1]
Nos termos da recomendação, ao julgar o Recurso Especial 2.107.398/RJ[2] a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) realizou o controle de convencionalidade da Lei Anticorrupção Empresarial (Lei 12.846/2013).
Ainda que não tenha mencionado expressamente a técnica, o que aquela Corte Superior fez no aludido recurso especial foi de fato exercê-la ao verificar se era compatível a norma da lei federal com a norma de tratado de direitos humanos incorporado. Mais especificamente, ao verificar se o artigo 30 da Lei Anticorrupção[3] era compatível com o artigo 8.4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,[4] a qual ostenta hierarquia supralegal no ordenamento jurídico brasileiro.
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Coube ao STJ identificar se a norma da Lei Anticorrupção que autoriza o processamento simultâneo de pessoas jurídicas com base naquela lei e na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) estaria em conformidade a norma da convenção que proíbe o processamento e sancionamento de um mesmo sujeito pelos mesmos fatos praticados.
Ao fazê-lo, o STJ julgou a controvérsia com suporte na jurisprudência da Corte IDH e citou a Opinião Consultiva 22/2016 que recusa a titularidade de direitos humanos por sociedades empresariais.[5] Trata-se de invocação que atendeu plenamente ao chamado da Recomendação 123/2022-CNJ e que realizou um autêntico diálogo com o tribunal internacional.
Mas a 1ª Turma foi além, e fundamentou no sentido de que “ainda que o Pacto fosse aplicável às pessoas jurídicas, o argumento [da inconvencionalidade do art. 30] não prospera”, pois no entendimento dos Ministros o que o art. 8.4 da Convenção Americana consagra é a proibição do non bis in idem a fim de proteger “o sujeito de direito contra a repetição de processos (sucessivos) ou de punições de mesma natureza pelos mesmos fatos, mas não impede que diferentes legislações, com propósitos diferentes e com sanções distintas, sejam utilizadas conjuntamente para fundamentar uma ação judicial”.
Desse modo, o STJ entendeu válida a regra do artigo 30 frente ao tratado internacional para permitir a acusação com fundamento simultâneo na Lei Anticorrupção e na Lei de Improbidade, inclusive no mesmo processo, “desde que, ao final, as duas leis não sejam empregadas para empregar punições de mesma natureza pelos mesmos fatos.”
Nota-se, portanto, que o STJ realizou um controle de convencionalidade ao cotejar e comparar as normas de hierarquia distinta, ainda que para ao final concluir pela convencionalidade e validade da lei nacional. Fez, portanto, um controle de convencionalidade negativo, cujo exercício é elogiável e está entre as suas atribuições, visto que é competente para julgar recurso especial quando alegadamente a decisão recorrida contrariar tratado (artigo 105, III, “a” da CF).
O controle de convencionalidade foi fomentado, e merece ser mais vezes repetido e invocado pelas partes processuais como maneira de garantir os direitos humanos e uniformizar sua interpretação em âmbito nacional. Entretanto, no caso analisado a conclusão a que chegou o tribunal vem acompanhada de inconvenientes processuais que podem resultar em violações a outros direitos das pessoas jurídicas, a exemplo do devido processo legal e da ampla defesa.
Afinal, ao permitir a invocação e aplicação simultânea da Lei 12.846/2013 e da Lei 8.429/92 num mesmo processo judicial, o STJ ignorou as distintas modalidades de responsabilização de cada lei. Enquanto a Lei 12.846/2013 prevê a reponsabilidade objetiva de pessoas jurídicas por atos de corrupção (artigo 2º), a Lei 8.429/92 alterada pela Lei 14.230/21 permite apenas a responsabilidade subjetiva por dolo (artigo 1º, § 1º).
Ou seja, a exigência do elemento subjetivo para responsabilização por ato tipificado na Lei de Improbidade não existe para a responsabilização por ato tipificado na Lei Anticorrupção, cenário esse que gera ônus processuais contraditórios na fase de instrução probatória, bem como dificuldades insolúveis às pessoas jurídicas acusadas na estruturação de suas defesas. Além disso, gera dificuldades na elaboração de sentenças coerentes e adequadamente fundamentadas pelos juízes.
As contradições e dificuldades prenunciadas indicam que, em futuro próximo, deverá o STJ ser chamado a reinterpretar o significado e alcance das normas de combate à corrupção e improbidade administrativa analisadas, ao menos para esclarecer como compatibilizar aqueles regimes tão distintos.
[1] Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4305>.
[2] Assim ementado: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E LEI ANTICORRUPÇÃO. UTILIZAÇÃO CONJUNTA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM. VIOLAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Não há violação ao art. 1.022 do CPC quando o órgão julgador, de forma clara e coerente, fundamenta adequadamente sua decisão, enfrentando as questões essenciais ao deslinde da causa, sendo certo que o mero descontentamento da parte com o julgamento desfavorável não caracteriza ausência de prestação jurisdicional. 2. A utilização conjunta das Leis n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) e n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) para fundamentar uma mesma ação civil não configura, por si só, violação ao princípio do non bis in idem. 3. É possível que as duas legislações sejam empregadas concomitantemente para fundamentar uma mesma ação ou diferentes processos, pois o que não é admissível é a imposição de sanções idênticas com base no mesmo fundamento e pelos mesmos fatos. Caso, ao final da demanda, sejam aplicadas as penalidades previstas na Lei Anticorrupção, aí, sim, é que deverá ficar prejudicada a imposição de sanções idênticas estabelecidas na Lei de Improbidade relativas ao mesmo ilícito. 4. A preocupação com a não sobreposição de penalidades deve ser devidamente examinada no momento da sentença, quando se analisará o mérito e a natureza das infrações, e não na fase preliminar da ação. 5. O art. 30, inciso I, da Lei n. 12.846/2013 reforça a compatibilidade entre os diplomas, determinando que as sanções da Lei Anticorrupção não excluem aquelas previstas na Lei de Improbidade. 6. Recurso Especial desprovido. (REsp n. 2.107.398/RJ, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 18/2/2025, DJEN de 24/2/2025) Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202303866487&dt_publicacao=24/02/2025>.
[3] Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de: I – ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
[4] Art. 8.4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá se submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
[5] Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_22_esp.pdf>