Não há dúvidas de que a Lei 12.846, de 2013, conhecida como Lei Anticorrupção, teve sua aplicação consolidada nos últimos anos. Isso é demonstrado pelo aumento de casos, como se observa na própria Controladoria-Geral da União (CGU), que atingiu em 2024, recorde de processos com base na lei.
Nesse contexto, observa-se, pela primeira vez, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentando controvérsia sobre o objeto e o âmbito de aplicação da Lei Anticorrupção, em vigor há mais de dez anos.
A discussão foi travada no Mandado de Segurança 29.690/DF, em que a parte autora buscava invalidar as sanções administrativas impostas pela CGU, em razão da violação do artigo 5º, V, da Lei 12.846/2013, que tipifica a conduta de “dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
No Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), a CGU concluiu que a autora teria cometido o ato lesivo por ter inserido informações inverídicas e incompletas no Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração (SIGBM), criando embaraço à fiscalização da Agência Nacional de Mineração (ANM).
A situação, contudo, não estaria relacionada a nenhum ato de corrupção em sentido estrito (i.e., pagamento de vantagem indevida a agente público), ensejando o debate sobre a possibilidade de incidência da Lei Anticorrupção.
Ao analisar a controvérsia inédita, o STJ delimitou o alcance da norma, desvinculando-o do seu nome popular. Ele entendeu que a lei tem um alcance amplo, incidindo, sem limitações, aos atos atentatórios ao patrimônio público nacional ou estrangeiro, aos princípios da Administração Pública e aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
No caso concreto, o STJ denegou a segurança, porque considerou legítimo o enquadramento da conduta – inserção inadequada/omissão de informações no SIGBM, embaraçando a fiscalização da ANM –, no inciso V do artigo 5º.
Diante dessa decisão, algumas reflexões se impõem. A primeira refere-se à previsibilidade e à segurança jurídica: como a 1ª Seção reúne as duas turmas responsáveis por matéria de Direito Público, a votação unânime indica entendimento pacífico entre os ministros.
Em segundo lugar, o reconhecimento da ampla incidência da norma, deve levar a uma pulverização da quantidade de PARs. Diante disso, é importante que as pessoas jurídicas estejam atentas à promoção de uma cultura de integridade, implementando mecanismos e procedimentos internos para garantir a conformidade.
Por fim, a decisão do STJ não pode ser lida como carta branca para enquadrar qualquer conduta lesiva à Administração Pública como passível de responsabilização nos termos da lei. O entendimento da Corte apenas afasta a ocorrência de corrupção em sentido estrito como pressuposto de aplicação da norma.
No entanto, para que haja a responsabilização, é preciso que todos os elementos do ato lesivo imputado estejam presentes, por exemplo, um inadimplemento contratual, se não constituir fraude ao contrato, não deverá atrair as pesadas sanções da lei.
Do mesmo modo, o descumprimento de uma obrigação tributária acessória, ainda que afete a fiscalização fazendária, ou o exercício do direito a não autoincriminação também não devem ser lidos como violação da Lei 12.846/2013.
Se mal interpretada, a decisão do STJ pode ser usada para legitimar atividade sancionatória ampla e irrestrita do Poder Público. Não é todo e qualquer ato contrário à Administração Pública que atrai a aplicação da lei, devendo estar presente elemento ofensivo à conduta delineada em cada tipo.
É inegável que o STJ deu um importante passo na consolidação da lei, fortalecendo o combate às condutas atentatórias ao patrimônio público, aos princípios da Administração Pública e aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Será preciso, agora, identificar de modo mais claro os elementos específicos de cada ato lesivo, o que ocorrerá com o processo de pulverização de PARs.