O reconhecimento de que determinados direitos trabalhistas são disponíveis – ou seja, passíveis de serem negociados – tem sido um dos pilares da evolução recente da jurisprudência trabalhista em relação à negociação coletiva.
Em vista disso, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) validou, por unanimidade, a cláusula coletiva prevendo valores diferenciados de vale-refeição (VR) e vale-alimentação (VA) entre grupos de empregados da mesma empresa, considerando fatores como a jornada contratada e o regime de trabalho.
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Diferenciação de benefícios por cargo e jornada
No caso analisado, o Sindicato dos Profissionais de Enfermagem, Técnicos, Duchistas, Massagistas e Empregados em Hospitais e Casas de Saúde do Rio Grande do Sul (Sindisaúde-RS) pleiteou a equiparação dos valores pagos a título de VR e VA, alegando que os benefícios eram pagos em dobro aos para empregados em cargos de confiança (gerentes e superintendentes da empresa), o que violaria o princípio da igualdade e isonomia.
Em sua defesa, a empresa alegou que a jornada de trabalho efetivamente desenvolvida por cada um dos empregados refletia diretamente na importância paga a título de VR e VA, sendo que os trabalhadores com carga horária inferior a 180 horas mensais deveriam receber menos conforme previsto em acordo coletivo.
O pleito foi julgado improcedente em 1ª instância, o que foi mantido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul), que reconheceu a validade da diferenciação com base em norma coletiva regularmente firmada, vinculando os valores à jornada contratada.
Em novo recurso dirigido ao TST, o ministro relator Breno Medeiros confirmou a decisão do TRT da 4ª Região, destacando a orientação do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da primazia da norma coletiva sobre a legislação, desde que respeitados os direitos constitucionalmente assegurados. Reiterou, ainda, que, por se tratar de direitos disponíveis, poderiam ser objeto de flexibilização pela via negocial.
Tema 1046 do STF: validação das negociações coletivas
O pano de fundo da decisão do TST é o Tema 1046 do STF, que consolidou o entendimento de que normas coletivas podem limitar ou restringir direitos trabalhistas disponíveis.
A tese fixada estabelece que: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Tal entendimento reafirma a importância da negociação coletiva como instrumento legítimo de adaptação das normas trabalhistas às peculiaridades de cada categoria ou setor econômico, assegurando equilíbrio entre a proteção ao trabalhador e as relações de trabalho.
Ao proferir seu voto, o ministro Gilmar Mendes estabeleceu três balizas fundamentais que devem orientar a atuação do Poder Judiciário na análise da validade das normas coletivas:
- Princípio da equivalência entre os sujeitos coletivos: parte-se da premissa de que empregadores e trabalhadores, representados por suas entidades sindicais, se encontram em posição de equilíbrio na negociação, o que confere legitimidade às cláusulas pactuadas e afasta intervenções judiciais indevidas baseadas em presunções abstratas de hipossuficiência;
- Teoria do conglobamento na apreciação de normas coletivas: as cláusulas convencionadas não podem ser analisadas isoladamente, mas sim no contexto do conjunto do instrumento coletivo. A invalidação seletiva de cláusulas que supostamente favorecem o empregador, com manutenção de benefícios ao trabalhador, desvirtua a lógica do equilíbrio negocial e enfraquece o próprio instituto da negociação coletiva;
- Disponibilidade ampla dos direitos trabalhistas nas normas coletivas, desde que respeitado o chamado “patamar mínimo civilizatório”: que assegura que quaisquer benefícios adicionais negociados não possam reduzir ou comprometer os direitos essenciais garantidos por lei.
Portanto, o que se vê é que a decisão do STF consagra um modelo de valorização da negociação coletiva como mecanismo constitucional válido para regulação das relações de trabalho.
Limites à negociação coletiva
É indiscutível que a negociação coletiva ocupa um espaço legítimo e relevante nas relações de trabalho, permitindo que normas laborais sejam adaptadas à realidade de cada setor ou categoria. No entanto, o seu alcance jurídico encontra limites que ainda geram debates relevantes na doutrina e jurisprudência.
Afinal, o que se pode – ou não – ser objeto de negociação sindical? Qual é o limite entre a autonomia de vontade do interesse coletivo e a indisponibilidade dos direitos previstas na legislação trabalhista? O que, de fato, seria o “patamar mínimo civilizatório” mencionado no voto do Gilmar Mendes?
A distinção entre direitos disponíveis e indisponíveis é o ponto de partida. Ainda que o conceito de “direitos indisponíveis” não esteja expressamente delimitado, o ordenamento jurídico nos fornece elementos para distinção. O próprio texto constitucional autoriza a flexibilização, por meio de negociação coletiva, de aspectos como salário (art. 7º, VI), jornada de trabalho (art. 7º, XIII) e turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, XIV).
Com o objetivo de conferir maior previsibilidade e segurança jurídica às negociações, a Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista) introduziu os artigos 611-A e 611-B à CLT.
O primeiro estabelece um rol exemplificativo de matérias sobre as quais convenções e acordos coletivos podem prevalecer sobre a lei – como jornada, banco de horas, plano de cargos e salários, teletrabalho e intervalo intrajornada. Já o segundo artigo fixa as matérias que não podem ser objeto de supressão ou redução por via negocial, por tratarem de garantias mínimas, como o salário-mínimo, FGTS, décimo terceiro salário, férias, licença-maternidade e normas de saúde e segurança do trabalho.
Contudo, mesmo diante da natureza indisponível de certos direitos, a jurisprudência tem admitido a negociação de aspectos acessórios, desde que preservado o núcleo essencial da proteção legal. É o caso do direito às férias que, embora não possa ser suprimido ou reduzido, sua forma de fruição pode ser ajustada por meio de norma coletiva. Foi o que entendeu a 3ª Turma do TRT da 3ª Região (Minas Gerais) ao validar cláusula que permitia o fracionamento das férias, individuais ou coletivas, em até três períodos, desde que nenhum fosse inferior a dez dias corridos[1].
O entendimento do Tema 1046 ainda tem sido aplicado como fundamento para outras decisões relevantes, como no recente caso envolvendo uma das maiores empresas mineradoras do Brasil, em que o TST validou cláusula coletiva que dispensava o registro de ponto para empregados de nível superior, sob a justificativa que o controle de jornada não é um direito absolutamente indisponível protegido pela Constituição.[2]
Assim, mais do que uma ferramenta de concessão, a negociação coletiva pode – e deve – ser vista como um instrumento de pactuação legítima, capaz de equilibrar segurança jurídica e proteção ao trabalho, devendo ser exploradas por empresas e trabalhadores.
[1] NORMA COLETIVA – FRACIONAMENTO DE FÉRIAS – VALIDADE. A norma coletiva assegura a possibilidade de fracionamento de férias individuais ou coletivas em até 3 períodos, sendo que nenhum deles poderá ser inferior a 10 dias corridos, o que foi observado pela empresa, conforme se depreende da ficha de registro do reclamante. O fracionamento – forma de fruição das férias – não constitui direito de indisponibilidade absoluta, sobretudo porque respeitado o período mínimo de 30 dias de descanso, razão pela qual a autonomia da vontade coletiva deve ser respeitada, por força do art. 7º, XXVI, da Constituição Federal e da jurisprudência vinculante do c . STF (Tema 1046 da Repercussão Geral). (TRT-3 – ROT: 00113188420235030027, Relator.: Convocado Vitor Salino de Moura Eca, Data de Julgamento: 22/07/2024, Terceira Turma)
[2] AGRAVO EM RECURSO DE REVISTA COM AGRAVO. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. 1. HORAS EXTRAS. VALIDADE DE NORMA COLETIVA QUE LIMITA OU RESTRINGE DIREITO TRABALHISTA NÃO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE. REGISTROS DE PONTO. DISPENSA PARA EMPREGADOS COM FORMAÇÃO EM NÍVEL SUPERIOR. TEMA 1.046 DA TABELA DE REPERCUSSÃO GERAL DO STF . 1.1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.121.633-GO, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.046) fixou a seguinte tese: ” São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”. 1.2. Na hipótese, as premissas fixadas no acórdão regional revelam a existência de norma coletiva que desobriga o registro de ponto dos empregados com formação superior. Por não se tratar de direito indisponível, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no ARE nº 1.121.633-GO, prevalece a autonomia da vontade coletiva, nos termos do art. 7º, XXVI, da CF, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal.” (Ag-RRAg-16071-12.2017.5.16.0002, 5ª Turma, Relatora Ministra Morgana de Almeida Richa, DEJT 28/03/2025).