Não raro, aprende-se, Brasil afora, nos cursos de graduação em Direito que o Supremo Tribunal Federal desempenha a função de guardião da constituição.
Nem sempre foi tão simples assim.
O termo guardião da constituição advém de uma calorosa disputa acadêmica entre Carl Schmitt e Hans Kelsen acerca da qual função do Estado deveria desempenhar a função de conferir força normativa à Constituição, fazendo o controle daquilo que a viola[1].
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Para Kelsen, essa função seria de um Tribunal Constitucional. Para Schmitt, trata-se de incumbência do chefe da função executiva do Estado, eis que o presidente representaria a unidade da autoridade política que traz consigo os anseios sociais do povo.
Se na antiga República de Weimar houve uma inclinação à ideia de Schmitt, pode-se afirmar com honestidade intelectual que Kelsen se sagrou vencedor em médio e longo prazo, eis que boa parte das democracias mundiais possui, hoje, uma Corte Constitucional com função de desempenhar o judicial review (controle de constitucionalidade) e com atuação independente do Poder Legislativo (legislador positivo).
É do professor Gilmar Mendes a inflexão de que a história deu razão a Kelsen[2], ao assinar, em 2006, a apresentação da edição em português da obra mestra de Schmitt O Guardião da Constituição, que foi publicada pela editora Del Rey.
De acordo com Kelsen, uma Constituição segundo a qual as leis inconstitucionais devem permanecer válidas simplesmente porque não poder ser declaradas inconstitucionais por uma Tribunal pouco mais representa que um mero desejo não vinculativo[3]. Aliás, para ele uma Corte Constitucional forte é essencial para que a jurisdição constitucional cumpra seu papel contramajoritário de proteção dos direitos fundamentais de minorias[4] e para que concilie os interesses do pacto federativo nas disputas entre os Länder (estados) e o Reich (União).
Na visão kelseniana, seria da própria natureza da Corte Constitucional se colocar a serviço da proteção das minorias[5], eis que, em uma democracia, o princípio majoritário (vontade da maioria) não poderia ser absoluto ao ponto de vilipendiar direitos da minoria, independentemente do tipo de minoria (de classe, religiosa etc.)[6].
Com alguma honestidade intelectual, pode-se afirmar que o Supremo Tribunal Federal, pelo menos ao longo das últimas duas décadas, vem endossando essa visão de Corte Constitucional emancipadora dos direitos fundamentais, humanos e de minorias.
Isso não é negado pelos membros do Supremo[7]. O atual presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, já escreveu em livro próprio que um dos papéis expressos exercidos pelo tribunal é o contramajoritário.[8]
ADPF 1.196: “Tribunal que não cuida dos mais pobres não é tribunal”
Kelsen certamente se orgulharia da frase que intitula este tópico.
Antes de chegar lá, todavia, mostra-se prudente sintetizar de que se trata a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.196, sob a relatoria do autor da referida frase, o ministro Flávio Dino.
A ação de controle abstrato questiona a constitucionalidade das Leis Municipais 16.703/2017 e 17.180/2019, que permitiram a concessão dos serviços funerários e cemitérios públicos do município de São Paulo à iniciativa privada. O partido alega que essa privatização resultou em práticas abusivas de cobrança, falta de transparência e critérios obscuros para a gratuidade dos serviços, violando o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).
O ministro Flávio Dino, relator do caso, concedeu duas medidas cautelares (tutelas provisórias).
Iniciada a sessão de julgamento do mérito da ADPF no último dia 14 de maio, no plenário físico, o relator, em seu voto, enfatizou que a discussão vai além dos interesses individuais, destacando a vulnerabilidade das famílias enlutadas e a necessidade de proteção diante de práticas comerciais abusivas.
Representando a legenda autora da ação (PC do B), o advogado e deputado federal Orlando Silva de Jesus Junior defendeu da tribuna que a Lei Municipal 17.180 feriria o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), mencionando limitações aos enterros gratuitos em cemitérios públicos, que estariam limitados a apenas dois por dia em alguns locais, afetando famílias paulistanas em situação de vulnerabilidade.
Para os fins a que esta resenha se destina, faz-se pertinente se ater apenas ao voto do relator, ministro Flávio Dino, acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes, que julga procedente a ADPF enfrentando o mérito da ação.
Pois bem.
Como bem resumiu matéria recente do portal Migalhas[9], o ministro Dino, em seu voto, teceu críticas incisivas à postura legislativa e à narrativa adotada pelo município de São Paulo.
Basta assistir à sessão de julgamento, disponibilizada publicamente no canal do Supremo no YouTube, para conferir que o resumo acima, de fato, representa uma boa síntese do voto do ministro Flávio Dino[10].
Arrematando seu voto, o relator rechaçou suposta afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF), e disse as exatas palavras seguintes: “Se um tribunal não cuida dos assuntos dos mais pobres (das viúvas, dos órfãos, enfim, daqueles que sofrem) será tudo, menos um tribunal”.
Ao que parece, trata-se de um modo de enxergar a razão de ser da Corte Constitucional brasileira inspirado na visão de Hans Kelsen acerca do órgão jurisdicional como verdadeiro guardião da constituição.
No caso em tela, a população hipossuficiente paulistana parece fazer as vezes das minorias tão mencionada por Hans Kelsen como principais interessadas no papel do controle de constitucionalidade realizado por um tribunal.
Por outro lado, ao analisar o julgamento de uma ADPF como a 1.196, em que o Supremo Tribunal Federal se orgulha de atuar como protetor dos vulneráveis e assume a missão de garantir a dignidade humana diante de práticas estatais e privadas potencialmente abusivas, Schmitt provavelmente ofereceria críticas severas, em três linhas principais.
Para Schmitt, ao se arrogar no poder de dizer o que é vulnerabilidade social e determinar limites à atuação do Poder Executivo municipal da capital paulista (como no caso dos serviços funerários), o STF certamente estaria ultrapassando o papel técnico-jurídico de um tribunal — isto é, estaria decidindo em última instância o que é justiça material e quem merece proteção estatal, substituindo a decisão política originária por uma decisão judicial[11].
Ademais, certamente Schmitt acusaria, neste caso concreto, o normativismo kelseniano de ser cego à decisão concreta e ao elemento existencial do Direito. Ao invocar princípios abertos como “dignidade da pessoa humana” ou “vulnerabilidade social”, o STF, segundo essa crítica, não estaria aplicando normas jurídicas determinadas, mas tomando uma decisão política disfarçada de interpretação constitucional.
Por fim, a atuação do STF como agente da proteção de minorias ou de “vulneráveis” também suscitaria, para Schmitt, o risco de fomentar a fragmentação da unidade do Estado.
Ele acreditava que o Direito Constitucional deveria reforçar a homogeneidade do corpo político, enquanto a hipertrofia de decisões em nome de categorias abstratas e abertas (vulneráveis, minorias, hipossuficientes) poderia gerar divisões internas e fraturas no tecido político nacional, o que ameaça a estabilidade da ordem jurídica. Divisões estas que, para Kelsen, seria completamente “do jogo” democrático.
Logo, não é demais afirmar que Carl Schmitt, se estivesse vivo, seria um crítico contundente da atuação do STF em ADPFs que envolvem a defesa de “vulneráveis” com base em cláusulas abertas e princípios constitucionais. Para ele, essa prática constituiria uma forma velada de ativismo judicial que desloca o centro decisório do Parlamento para o Judiciário, corroendo as bases do Estado representativo.
A crítica schmittiana não estaria no conteúdo do voto do Min. Flávio Dino na ADPF nº 1.196, mas na forma como o ministro, com extrema naturalidade, pronunciou: ““Se um tribunal não cuida dos assuntos dos mais pobres (das viúvas, dos órfãos, enfim, daqueles que sofrem) será tudo, menos um tribunal”.
Considerações finais
A frase do ministro Flávio Dino categorizando o Supremo Tribunal Federal como a corte que cuida não geraria qualquer espanto em Kelsen.
Para Schmitt, por outro lado, trata-se de verdadeiro vilipêndio à autoridade política dos poderes que foram eleitos para cuidar.
Autores como Jeremy Waldron[12] se uniriam a Schmitt na contundência das críticas a um STF que, com extrema naturalidade, se autoproclama de corte que cuida. Não pelo mérito do auxílio aos vulneráveis, mas pela competência para tal.
De toda forma, a pretensão desta resenha crítica foi tão somente demonstrar, no caso mais recente ao qual se teve acesso, que as ideias de Kelsen continuam influindo na visão que a própria Corte Constitucional brasileira tem de si: uma legítima protetora de direitos dos vulneráveis e das minorias.
Todavia, não se pode olvidar de dizer que a naturalidade com a qual seus membros defendem uma postura tão comissiva da corte gera algum incômodo neste autor.
É papel típico de uma Corte Constitucional cuidar? Para Kelsen, sim. Para Schmitt, não. Para este autor, talvez. Mas não ao ponto disso, não ocorrendo, destribunalizar um tribunal.
BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. 1ª- edição. Rio de Janeiro: História Real, 2020.
HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Fabris, 1997.
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007
TUSHNET, Mark. Taking The Constitution Away From The Courts. [S.l.:s.n.], 1999.
VINX, Lars. The Guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the Limits of Constitutional Law. Cambridge University Press, 2015
WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Editora: Lumen Juris, 2010.
WALDRON, Jeremy. Deliberation, Disagreement, and Voting. in Deliberative Democracy And Human Rights. 210 [S.l.:] Harold Hongju Koh & Ronald C. Slye eds., 1999.
WALDRON, Jeremy. Legislating with Integrity. 72 Fordham L. Rev. [S.l.], 373, 2003.
WALDRON, Jeremy. Moral Truth and Judicial Review. 43 Am. f. Jurís. 75, 1998.
[1] VINX, Lars. The Guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the Limits of Constitutional Law. Cambridge University Press, 2015.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-nov-11/filosofo_entre_fausto_sanctis_gilmar_mendes/, acesso em 17 de maio de 2025, às 19h15.
[3] VINX, Lars. The Guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the Limits of Constitutional Law. Cambridge University Press, 2015, p. 69.
[4] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 239.
[5] VINX, Lars. The Guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the Limits of Constitutional Law. Cambridge University Press, 2015, p. 66.
[6] VINX, Lars. The Guardian of the Constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the Limits of Constitutional Law. Cambridge University Press, 2015, p. 72.
[7] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/140248/ministros-do-stf-comentam-atualidade-das-teorias-de-hans-kelsen, acesso em 17 de maio de 2025, às 20h18.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. 1ª- edição. Rio de Janeiro: História Real, 2020.
[9] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/430322/stf-vista-adia-analise-de-preco-de-servico-funerario-na-cidade-de-sp, acesso em 17.05.2025 às 21h14.
[10] https://www.youtube.com/watch?v=DmCCZSYYLQY , acesso em 16.05.2025, às 14h00.
[11] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p. 33.
[12] WALDRON, Jeremy. A Essência da Oposição ao Judicial Review. Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Editora: Lumen Juris, 2010, p. 131. Ideias do parlamento como debatedor político ideal também presente em várias outras obras de Waldron, as quais serão mencionadas na bibliografia desta resenha,