O Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar nesta quarta-feira (28) as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4245 e 7686, que colocam em pauta a compatibilidade da Convenção da Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990.
As ações questionam a forma como o tratado tem sido aplicado pelo Brasil, especialmente no que diz respeito à proteção integral de crianças e adolescentes, bem como à garantia de um processo justo, com direito de defesa, escuta e respeito à dignidade humana.
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A Convenção da Haia é um mecanismo do direito internacional voltado ao combate da subtração internacional, que ocorre quando uma criança é levada para um país diferente daquele onde reside habitualmente, ou dele é retida de forma indevida, por um dos genitores, responsáveis legais ou por terceiros, sem que houvesse autorização parental ou judicial. A Convenção, portanto, institui um sistema de cooperação jurídica entre Estados signatários para assegurar o retorno imediato da criança e do adolescente.
Contudo, a própria Convenção prevê exceções à regra do retorno imediato, tais como: a integração da criança ao novo meio; o consentimento posterior ou não exercício efetivo do direito de guarda pelo responsável que permaneceu no país de residência habitual; grave risco à criança ou adolescente; quando há sua manifestação expressa em relação ao não retorno; e a incompatibilidade com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Nesse contexto, a ADI 4245, proposta pelo partido Democratas (o antigo DEM, atual União Brasil) em 2009, questiona a forma como a Convenção da Haia vem sendo interpretada pelas autoridades judiciárias brasileiras, em especial no que se refere à aplicação “automática” da regra geral de retorno imediato.
A principal crítica é que, ao ignorar as exceções previstas, a aplicação da Convenção pode violar direitos fundamentais, a prioridade absoluta e a garantia do melhor interesse da criança e do adolescente, previstos no artigo 227 da Constituição. Os pedidos formulados concentram-se na interpretação da Convenção à luz da Constituição, sem a necessidade de declarar a inconstitucionalidade do referido tratado internacional.
Já na ADI 7686, apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2024, é proposto que a suspeita fundada de violência doméstica contra o genitor que permanece no país de origem seja considerada uma exceção ao retorno da criança. A ação argumenta que, mesmo quando a criança não seja vítima direta da violência, a exposição a um ambiente abusivo pode representar risco grave. É importante lembrar que é dever do Estado brasileiro, conforme a Constituição, criar mecanismos de prevenção e enfrentamento à violência no âmbito das relações familiares.
Ainda que a Convenção preveja exceções à regra de retorno imediato, é necessário destacar que seu texto permanece inalterado desde a sua entrada em vigor, sem adaptações às transformações sociais e às novas dinâmicas familiares. A princípio, buscava-se regular as situações nas quais o pai levava as crianças ou adolescentes para um país estrangeiro com a expectativa de obter uma decisão mais favorável de guarda para si.
No entanto, as estatísticas se inverteram a partir da década de 1990, e os dados mais atualizados, compilados pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH), revelam que pelo menos 75% das subtrações são cometidas por mães. A violência doméstica aparece como um dos principais motivos para esses casos, e, embora o tratado não traga uma previsão clara que permita tratá-la como uma exceção às regras estabelecidas, esse contexto evidencia a relação estreita entre os casos e a violência doméstica contra mulheres, crianças e adolescentes, o que revela a necessidade de serem analisados de forma interseccional, considerando questões relativas à gênero, raça, etnia, imigração e outros marcadores sociais.
Importante destaque deve ser feito em relação aos esforços de vítimas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais para expor, em todo o mundo, as graves violações de direitos de crianças, adolescentes e mulheres na condução e decisão de processos que determinam o retorno imediato.
Dificuldades vivenciadas pelas mães brasileiras migrantes, principalmente no que diz respeito à obtenção de provas, ao desconhecimento do idioma e das leis locais, à dependência financeira, imigratória e emocional, e ao isolamento social são alguns dos fatores que geram múltiplas vulnerabilidades para quem vivencia essa realidade.
Além disso, muitos países tratam a subtração de crianças e adolescentes como um crime, o que inviabiliza o retorno da mãe na companhia dos filhos ou filhas, sob o risco de enfrentarem processos criminais e ficarem privadas de liberdade. Sob essa conjuntura, o retorno imediato de crianças e adolescentes ao país representa uma ruptura profunda e muitas vezes irreversível com a mãe, com os familiares maternos e sua vida no Brasil.
Nesse sentido, é fundamental reforçar os direitos de crianças e adolescentes na interpretação e aplicação da Convenção: a Constituição e o ECA os reconhecem como sujeitos de direitos e garante respeito a sua condição de desenvolvimento, sendo esse um dever comum do Estado, das famílias e da sociedade A partir da Constituição e do ECA, enquanto sociedade brasileira, assumimos um compromisso político e coletivo de priorizar crianças e adolescentes em todas as nossas decisões.
O mecanismo de análise caso a caso, em relação à aplicação da Convenção, garante que o melhor interesse de crianças e adolescentes seja resguardado, com prioridade absoluta, pois permite que o sistema de justiça providencie soluções personalizadas que abordem as necessidades específicas encontradas em cada caso. Para que isso seja possível, esse mecanismo também deve ter como premissa a garantia do direito de escuta e de participação da criança e do adolescente durante todo o processo, conforme previsto no ECA e na Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.
Dessa forma, entende-se que as decisões do STF terão um impacto decisivo ao estabelecer diretrizes de caráter obrigatório para todas as esferas e poderes do Estado brasileiro. Elas orientarão a atuação dos órgãos, instituições e servidores que lidam com esses casos, além de influenciar a formulação de políticas públicas voltadas à proteção de crianças, adolescentes e mulheres em contextos transnacionais.
No cenário internacional, há grande expectativa quanto ao posicionamento que será adotado pela Suprema Corte. Em comparação a outros países, o Brasil está entre os que mais avançaram no debate sobre o tema, e o STF poderá se tornar a primeira corte a se pronunciar sobre a constitucionalidade da Convenção da Haia com a intenção de ampliar a sua interpretação para parâmetros contemporâneos, o que poderá servir de estímulo e exemplo para que outros países signatários discutam sobre a necessidade de harmonizar a aplicação do tratado aos quadros normativos nacionais de direitos fundamentais.
O julgamento, portanto, representa uma oportunidade histórica para reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a Doutrina da Proteção integral e com a prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes.