Há quem acredite que a transformação digital é um processo irrefreável, resultado da evolução tecnológica, sendo a digitalização de serviços em saúde um destino quase natural. No entanto, a digitalização da saúde não se resume à adoção de tecnologias.
O uso efetivo de soluções digitais para ampliar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde exige regras, coordenação federativa, uso qualificado dos dados e incentivos claros — como os repasses condicionados — para transformar informação em ação e melhorar, de fato, a vida das pessoas.
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A pesquisa Exemplos em Saúde Digital (Digital Health Exemplars), parte do programa Exemplars in Global Health, financiado pela Fundação Gates, tem por objetivo gerar insights práticos sobre como países utilizaram tecnologias de saúde digital para melhorar os sistemas de atenção primária e contribuir para melhores desfechos em saúde. Ela investigou o tema em cinco países: Ruanda, Gana, Índia, Brasil e Finlândia.
No caso brasileiro, a pesquisa sobre a transformação digital no Sistema Único de Saúde (SUS) evidencia que a digitalização da saúde e os resultados positivos no país são decorrentes de escolhas da criteriosa governança em nível federal, e de uma abordagem que incentivou estados e municípios a adotarem ações coordenadas, com apoio financeiro. Essa forma de atuação do Ministério da Saúde, já observada na Atenção Primária à Saúde (APS) desde a criação do SUS, tem sido, agora, aplicada também na Saúde Digital.
Através de entrevistas aprofundadas com diversos atores, e análise de dados secundários, o estudo Exemplos em Saúde Digital identificou que a transformação digital da saúde no Brasil tem se apoiado em um modelo de governança essencial para permitir avanços concretos na digitalização dos serviços, respeitando as especificidades territoriais e promovendo a equidade no acesso à saúde, especialmente em um país de dimensões continentais e alta desigualdade socioeconômica.
Desde 1991, o Brasil possui um órgão dentro do governo federal dedicado exclusivamente a criar e implementar soluções digitais em saúde, o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus). O Datasus desempenha um papel central na construção do arcabouço digital do SUS, tendo desenvolvido mais de 200 sistemas de informação atualmente ativos, como o SI-PNI (imunização), Sisab (atenção primária) e o Sage (apoio à gestão). Essa trajetória permitiu o envio de dados sobre processos em saúde de todo o país, inclusive em regiões com baixa capacidade instalada.
Áreas especializadas do Ministério da Saúde também desenvolveram sistemas e soluções digitais próprias para integração de informações para níveis específicos, como a atenção primária; e implementaram programas de incentivo financeiro para estimular a adoção das soluções digitais em nível subnacional. Em um país tão grande e desigual como o Brasil, a oferta e o fomento à adesão a sistemas eletrônicos se mostraram fundamentais para o desenvolvimento das capacidades locais em saúde digital.
No entanto, até 2023, essas iniciativas eram conduzidas por departamentos isolados, sem um órgão específico dedicado a desenvolver e implementar esforços de transformação digital na saúde.
A criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital (Seidigi), em 2023, representou um marco institucional decisivo para consolidar a agenda de saúde digital como política de Estado. A existência de uma área dedicada exclusivamente ao tema fortaleceu a governança federativa em saúde, promovendo maior diálogo e coordenação tanto horizontalmente, dentro do Ministério da Saúde, quanto verticalmente, entre os níveis federal e subnacional.
Além disso, a Seidigi tem sido responsável por manter o debate e a tomada de decisão sobre saúde digital em pauta de forma contínua. Em vez de tratar o tema como algo pontual — restrito à formulação de planos estratégicos ou a iniciativas isoladas — a secretaria se dedica a fazer avançar, de forma permanente, a adoção de tecnologias digitais no SUS.
Isso significa incorporar a saúde digital como uma dimensão da política de saúde, com governança dedicada para planejar, implementar, monitorar e revisar ações. Essa integração vai além da dimensão técnica e da organização de dados: há um esforço ativo para transformar os dados estruturados em inteligência para gestão, formulação de políticas e resposta a emergências em todo o país, por meio de um modelo que viabiliza o uso e o compartilhamento de dados entre os diferentes níveis de governo.
O Programa SUS Digital, carro-chefe da Seidigi, tem como objetivo impulsionar a transformação digital do SUS, com foco na atuação coordenada e sustentável de estados e municípios, promovendo equidade territorial. A implementação do programa começou com a aplicação de um Índice Nacional de Maturidade em Saúde Digital, criado para diagnosticar o nível de prontidão tecnológica das diferentes regiões de saúde do país.
Os resultados desse diagnóstico serviram como base para a elaboração dos planos de ação regionais e locais, que devem ser construídos por estados e municípios de acordo com suas necessidades e prioridades específicas, em alinhamento com programas prioritários do Ministério.
A telessaúde, por exemplo, é recomendada como ferramenta para ampliar o acesso à saúde em regiões remotas ou com escassez de profissionais, por meio de serviços como teleconsultoria, telediagnóstico e teleconsulta. As recomendações incluem também a criação de estruturas de governança da saúde digital em nível subnacional – ou seja, a atuação da Seidigi no nível federal tem incentivado a criação de estruturas semelhantes em estados e municípios.
Pela primeira vez, o Ministério da Saúde destinou um volume significativo de recursos exclusivamente para a transformação digital — R$ 464 milhões apenas em 2024 —, adotando critérios que vão além do número de habitantes. O repasse prioriza regiões com menor maturidade digital, critério associado à maior vulnerabilidade social. Esse arranjo busca garantir que municípios pequenos e com menor capacidade instalada possam avançar na digitalização dos serviços de saúde.
Dessa forma, a trajetória da saúde digital no Brasil mostra que a transformação tecnológica efetiva não depende apenas da disponibilidade de ferramentas, mas da construção de uma governança sólida, da indução estratégica por meio de incentivos e da valorização da equidade como princípio orientador.
Como o Brasil se destaca entre países considerados ‘casos de sucesso’ em saúde digital
O estudo analisou cinco países com diferentes níveis de maturidade em saúde digital: Ruanda, Gana, Índia, Brasil e Finlândia. Ruanda, classificada como país emergente, adota um modelo de governança liderado pelo Ministério de Tecnologias da Informação e Comunicação, que posiciona Diretores de Transformação Digital em cada ministério, incluindo o da Saúde, para garantir alinhamento à estratégia nacional de digitalização.
Gana e Índia, em estágio de transição, operam por meio de entidades parcialmente autônomas ligadas ao Ministério da Saúde. No caso ganês, o Serviço de Saúde de Gana e a Autoridade de Seguro Nacional dividem responsabilidades, enquanto na Índia, a Autoridade Nacional de Saúde conduz a transformação digital e a gestão do seguro saúde.
A Finlândia, considerada líder em maturidade digital, passou por uma ampla reforma que consolidou serviços municipais em regiões autônomas, com forte coordenação interministerial entre Saúde e Finanças e uso de padrões interoperáveis definidos nacionalmente.
O modelo brasileiro se diferencia por combinar uma estrutura central com forte capacidade normativa e técnica, inserida em um sistema de saúde descentralizado e federativo. Em vez de criar uma agência autônoma ou depender de articulações externas, como em Gana ou na Índia, o Brasil aposta na institucionalização da transformação digital dentro do próprio Ministério da Saúde, garantindo alinhamento direto com as políticas públicas e os mecanismos de financiamento.
Ao mesmo tempo, a governança brasileira se fortalece por meio do uso de repasses condicionados e da definição de padrões nacionais obrigatórios, criando incentivos claros para estados e municípios aderirem às diretrizes federais. Essa combinação de coordenação central, indução federativa e capacidade técnica consolidada torna o modelo brasileiro particularmente interessante para países com sistemas de saúde descentralizados que buscam escala, equidade e interoperabilidade na saúde digital.