Motoapp: regular, não proibir

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São Paulo não tem trânsito eficiente. Muito menos amigável. Também não tem transporte suficiente para atender adequadamente a demanda, especialmente nas periferias, aquela que mais precisa de transporte público.

O viário, bem público, é disputado por todos os modais. Historicamente, foi dada preferência ao automóvel, ineficiente para a boa mobilidade urbana. Vivemos enredados entre a prevalência do transporte individual, os interesses em torno do transporte coletivo (individual e coletivo) e a irracionalidade alocativa da destinação do viário, o que torna o trânsito hostil aos mais vulneráveis: pedestres, motociclistas, ciclistas, usuários de patinetes elétricos.

Nesse contexto, se insere a polêmica em torno do motoapp, opção de deslocamento a custo menor do que táxis e automóveis e com previsibilidade maior que os ônibus.

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O município de São Paulo sempre despontou como fonte de inovação em políticas de modalidade. Agora resolveu andar na contramão da lei e das evidências. Há dois anos, a municipalidade publicou decreto suspendendo temporariamente o transporte individual de passageiros em motos por aplicativo. Desafiou a lei alegando que precisava realizar maiores estudos. Passado esse tempo o máximo que conseguiu produzir foi um relatório cuja conclusão final é que viagens em motocicleta ensejam riscos!

Não foi feita uma pesquisa comparativa com outros municípios. Não se demonstrou porque viagens intermediadas por aplicativos são mais perigosas que caronas diárias em motocicletas. Não se comparou riscos de viagens de entregadores de encomendas e de transporte de passageiros.

Não se fez Análise de Impacto Regulatório (AIR), nem análise de custo benefício. Tampouco se regulou a atividade, estabelecendo condições de segurança e idoneidade para oferta de serviço. Simplesmente se pretendeu proibir que aplicativos ofereçam tais viagens sob a alegação que, do contrário, haveria uma “carnificina”. Algo que não sobreveio em outros municípios, mesmo da região metropolitana em contam com o serviço há anos.

A pretensão afronta a lei, carece de fundamento e vai contra o interesse público. Municípios não têm competência para proibir transporte individual por motocicletas e muito menos a intermediação por aplicativos.

Compete à União legislar sobre trânsito, transporte e mobilidade (Constituição, artigo 21, IX e XI). Proibir o motoapp seria o mesmo que a municipalidade vetasse viagens de motocicleta ou motos com dois passageiros na cidade. Proibir os aplicativos em âmbito municipal corresponderia a dizer que no território paulistano bets são vedadas.

A Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12) separa transporte público (ônibus, táxi) do transporte remunerado privado individual de passageiros, que é expressamente admitido independente do veículo. Já a Lei 13.640/18 delimita estritamente os limites do poder regulatório do município, o que torna qualquer outra exigência ilícita e, tacitamente, veda a proibição de algum destes modais de transporte individual.

Fosse pouco, a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) determina ser abuso regulatório, ilícito portanto, impedir o exercício de atividade econômica sem fundamento necessário e suficiente.

A motivação declarada pela municipalidade, por sua vez, é absolutamente inconsistente. Alega-se que a atividade seria temerária, fomentando mortes e acidentes. Sem nenhum estudo. E contra as evidências colhidas onde já opera o serviço, como demonstram as estatísticas. Pior: contra o verificado nos dias em que o serviço esteve ativo em São Paulo: em mais de 500 mil viagens, só duas ocorrências, ambas leves. Estatisticamente, um risco menor que andar de patinete.

Alega-se ainda que este modal sobrecarregaria a rede de saúde e a previdência. Para além da absoluta falta de estudos sérios e mesmo evidências, a alegação vai contra a PNMA que exige para tal transporte a contratação de seguro (artigo 11-A, II).

No último ano, segundo dados do Infosiga, 483 pessoas morreram em sinistros envolvendo motocicletas na capital paulista, algo lamentável. Atribuir isso ao transporte individual por aplicativo é contornar a verdade. Não há estatística oficial atribuindo uma fração destas motes a aplicativos. A presunção, aliás, vai em sentido contrário pois em 2024 o serviço não era oferecido por boa parte do ano.

É contrafactual pretender atribuir esse aumento aos condutores que utilizam apps. Em todo o país, eles representam 2,3% do total da frota. São 800 mil trabalhadores autônomos para um contingente de 34,2 milhões de motos. Um dos aplicativos disponíveis já intermediou um bilhão de corridas nessa modalidade. Apurou índice de acidentes ou incidentes de 0,0003% de todos os deslocamentos realizados pelas motocicletas.

O serviço de motoapp oferecido em cidades como o Rio de Janeiro e outras 24 capitais de estado brasileiras, mostram as estatísticas, não elevou o número de sinistros.

O que se verifica em municípios em que o serviço é admitido, é que motociclistas profissionais, que já usam a moto para entregas, migrem para este serviço, em tempo parcial ou sazonalmente. A se tomar pelo raciocínio temerário das autoridades, o próximo passo será proibir entregadores em motocicletas para evitar acidentes.

Mas o pior efeito dessa cruzada contra o motoapp é a desconsideração do interesse do cidadão paulistano. Esse modal de transporte é muito útil e empregado na primeira ou última milha de uma viagem. É utilizado por pessoas de sua casa, especialmente em comunidades mais periféricas, até a conexão com o modal de transporte radial (ônibus, trem, metrô). Na periferia dos grandes centros substitui as viagens a pé. Para as mulheres é alternativa para trajetos nos quais são expostas a violência, pois os motoristas passam por crivo e controle rigorosos.

O valor médio das viagens fica ente cinco e dez reais. Em seminário da Folha de S. Paulo, Geovana Borges, da Cufa, afirmou a importância do motoapp para as mulheres da periferia. Destacou ainda que a atividade é uma alternativa de renda para famílias mais vulneráveis. Fatores simplesmente desprezados pelo município de São Paulo.

Regular qualquer atividade é prerrogativa do Poder Público. Mas como todo dever deve ser realizado com responsabilidade, fundamentação exaustiva. Proibir uma atividade que já existe há anos em mais de 3.300 das 5.571 cidades brasileiras baseado em raciocínios intuitivos ou alegações genéricas tangencia a inconsequência.

Andar de moto é perigoso? Sim. Vamos proibir as motocicletas? Claro que não. A circulação de motos no país desde há muito foi regulamentada, e cabe aos agentes públicos fiscalizá-la e executar boas políticas de educação de trânsito. Vale o mesmo para o transporte individual de passageiros por motoapp. A lei nacional já determinou que é proibido proibir. Cabe aos municípios regular. Sem abuso, com motivação e ponderação. E sem bravatas.

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O autor deste artigo atuou como advogado da 99.