Muito se tem comentado sobre a recente decisão do governo dos Estados Unidos de pausar a execução da lei antissuborno no exterior dos EUA, conhecida pela sua sigla FCPA (Foreign Corrupt Practices Act). Apenas para situar o leitor, FCPA é uma lei americana aprovada em 1977, durante o governo Carter, para punir empresas (americanas e também algumas estrangeiras) que subornassem agentes públicos estrangeiros.
O presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva, com o objetivo de pausar “a aplicação da lei FCPA para promover a segurança econômica e nacional americana“[1]. A razão para a pausa seria que a lei alegadamente estaria minando a competitividade das empresas americanas no exterior.
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O texto diz que “aplicação excessivamente expansiva e imprevisível da FCPA contra cidadãos e empresas norte-americanas — pelo nosso próprio governo — para práticas comerciais rotineiras em outras nações não só desperdiça recursos limitados do DOJ que poderiam ser dedicados à preservação das liberdades americanas”.
A FCPA possui relevante importância histórica e pioneirismo, e serviu como lei modelo sobre o tema, tendo seu formato sido exportado para diversos países do ocidente. E por que isso aconteceu? Justamente por força da política externa americana para proteger suas empresas. Sim, nos anos 1990, empresas americanas começaram a se queixar para o governo que estavam perdendo negócios, pois só os EUA puniam suas empresas por subornar agentes públicos estrangeiros.
Diziam que enquanto seus concorrentes estrangeiros (principalmente europeus), em tese, poderiam fazer o que bem entendessem, pois dificilmente seriam punidos, empresas americanas estariam diminuindo sua capacidade de fazer negócios internacionais com os mesmos riscos e em paridade de condições (o chamado level playing field).
Em resposta a isso, e com o objetivo claro de garantir melhor ambiente de negócios, o governo Clinton iniciou ofensiva no campo diplomático para emplacar e conseguir a adesão dos países para a assinatura da Convenção Antissuborno da OCDE. Note, antes de 1996, o mundo (organizações e demais stakeholders) nem sequer tratavam corrupção como tema relevante, pelo contrário, até o evitavam por enxergarem na época que era algo como um vespeiro ou tema politicamente sensível.
Assim, foram os EUA que promoveram essa internacionalização da FCPA e a adoção de seu modelo em escala global, por meio de convenções internacionais como a Convenção Antissuborno da OCDE e a Convenção da ONU contra a Corrupção, muito no afã de proteger suas empresas.
Mas então o que mudou? A política externa norte-americana, levando ao extremo o lema do MAGA (Make America Great Again), que explicitamente coloca os EUA primeiro e o resto depois, cheio de discursos extremados e ufanistas que buscam agradar parte do eleitorado. E tal mudança representou mudança de postura do próprio Trump, que, em sua primeira administração, permitiu que o DOJ fosse agressivo no combate ao suborno transnacional – o órgão bateu alguns recordes de enforcement da FCPA.
Em termos práticos e fáticos, importante lembrar que o tal argumento de que a FCPA pune só empresas americanas não parece ser preciso, já que a lei também sempre puniu empresas estrangeiras, historicamente na proporção de 59% empresas dos EUA versus 41% estrangeiras[2]. Dessas, várias brasileiras pagaram para fazer acordo, como caso da Odebrecht que pagou bilhões de dólares, muitos dos quais foram para o tesouro americano.
Fora isso, o alegado impacto na indústria e que muitos recursos estariam drenados para prejudicar empresas, importante lembrar a média de casos (FCPA enforcement actions) nos últimos dez anos foi de sete casos por ano, isso mesmo, 7 casos[3].
Quanto ao alarde gerado com a pausa, de que poderia comprometer diretamente o combate à corrupção, também não vejo uma correlação tão direta. A FCPA está contida no Securities Exchange Act de 1934, ou seja, legislação que regula os mercados financeiros secundários e cujo objetivo é garantir um ambiente transparente e justo para os investidores do mercado financeiro.
Além do escopo conhecido e mais propagandeado da lei, nela estão contidas importantes (e muito usadas) obrigações das empresas de manterem seus livros e registros sempre precisos e completos, através de controles internos efetivos. Historicamente, a FCPA foi mais usada para investigar e processar empresas por violações a tais dispositivos (internal control failures), do que os que tratam de suborno propriamente dito, dada sua maior amplitude e facilidade de se juntar provas.
Há também algo de plausível quanto ao argumento da atuação “imprevisível” e “expansiva” desses órgãos. O DOJ e a SEC sempre foram livres para criar paradigmas, guias e manuais como fontes “não legislativas” da lei. Dependendo do direcional e da posição de quem está no comando do DOJ/ SEC, as diretrizes sobre o enforcement mudam e são criadas interpretações consideradas muitas vezes expansivas.
Basta pensar que a lei só foi pontualmente alterada duas vezes na história, mas seu enfoque se ampliou e mudou significativamente ao longo dos anos. No mais, em sua maioria avassaladora, os casos não passam pelo crivo do Judiciário, o que aumenta ainda mais o poder dos órgãos responsáveis pelo enforcement.
Mas em termos práticos, o que muda ou o que se esperar? Antes de mais nada, importante lembrar que a pausa tem prazo de 180 ou a até 360 dias, a priori. Será que isso deveria fazer com que as empresas parassem de se preocupar com a consequência do suborno internacional? Em minha visão não, pois podem ser alvo de outras tantas legislações internacionais (muitas com o mesmo alcance extraterritorial) e seus executivos continuarão expostos a sanções criminais.
Além disso, o que acontece depois da pausa? A lei continua válida, a menos que o Congresso norte-americano decida alterá-la (o que não é totalmente impossível, já que atualmente o partido de Trump tem maioria nas duas Casas). Adicionalmente, por mais que se defenda um prazo prescricional de cinco anos, é importante lembrar que em muito acordos feitos com o DOJ, empresas renunciaram esse ponto em troca de benefícios, por isso mesmo, é muito comum ver acordos que tratam sobre fatos que ocorreram há muito mais de cinco anos.
Sobre impactos nos programas de compliance, talvez fossem afetados aqueles que ainda pudessem ser monotemáticos em FCPA. No entanto, o que se vê no mercado, são programas mais amplos e atualizados, e que hoje são responsáveis pela gestão de outros riscos, como os ESG. Programas maduros, que foram capazes de ajudar na modulação de culturas de integridade de uma maneira sustentável, tendem a permanecer fortes.
Como acertadamente dito por Hui Chen, as empresas não deveriam considerar o enforcement da FCPA como a principal razão para continuarem o aprimoramento de seus respectivos programas de compliance, já que a ética e a integridade são pilares mais amplos do que o foco exclusivo no suborno internacional[4].