Corte IDH condena Nicarágua por falhas em investigação de caso de feminicídio

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou que a Nicarágua é responsável internacionalmente pela ausência de diligência devida com perspectiva de gênero na investigação penal da morte da nicaraguense Dina Alexandra Carrión González, com indícios de feminicídio, ocorrida em 2010. O inquérito anteriormente aberto pelo Ministério Público do país havia constatado que a causa da morte teria sido suicídio e, por essa razão, foi arquivado. O caso chegou à Corte IDH em fevereiro de 2022 e, em julho de 2024, a família pediu justiça e a sua reabertura.

O Tribunal concluiu em sentença que o Estado da Nicarágua levou adiante um processo judicial sobre a morte de Dina com base em estereótipos negativos de gênero, descumprindo sua obrigação de investigar com a devida diligência a morte “potencialmente ilícita” da vítima, com indícios de feminicídio.

Na sentença, a Corte IDH afirma ter observado que durante a investigação dos acontecimentos relacionados à morte de Dina foi realizada uma investigação sobre seu histórico médico-psiquiátrico e suposições foram feitas sobre uma ligação entre seu estado emocional e um possível suicídio.

“O Tribunal considerou que uma investigação com uma perspectiva de gênero que satisfaça o padrão reforçado de devida diligência e garantia de não discriminação e igualdade perante a lei, não deve basear-se em estereótipos negativos de gênero ou juízos de valor sobre a vida privada da vítima e muito menos utilizá-los como critérios para definir ou descartar linhas de investigação”, diz trecho da decisão.

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A Corte também declarou que a Nicarágua é responsável pela falta de devida diligência nos processos relativos ao contato entre o filho de Dina e seus avós maternos; ausência de investigação das ameaças recebidas por uma das irmãs de Dina, provavelmente relacionado à sua promoção da investigação do ocorrido; e pelos impactos da impunidade aos familiares da nicaraguense.

Como consequência, a Corte declarou a violação por parte da Nicarágua aos direitos das garantias judiciais à verdade, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, em relação aos artigos 1.1, 2 e 4 da Convenção Interamericana e ao art. 7 da Convenção de Belém do Pará, em prejuízo de Aída Luz González Castillo, Humberto Carrión Delgado (pais de Dina), Aída Mercedes Carrión González, Vilma Valeria Carrión González e Humberto Yamil Carrión González, irmãos dela.

Também declarou a violação ao direito à proteção familiar e aos direitos de integridade pessoal, de circulação e residência, em prejuízo de Vilma Carrión González, uma das irmãs da vítima. A Corte determinou, ainda, que a Nicarágua indenize em US$ 260 mil os familiares de Dina Carrión, por considerar necessário fixar uma compensação pelos danos materiais e morais sofridos pelas violações, considerando os distintos aspectos dos danos ocasionados.

Além disso, ordenou ao Estado da Nicarágua a investigação da morte de Dina Alexandra Carrión González e, se necessário, julgue e puna os responsáveis. Também deliberou a investigação das ameaças sofridas por sua irmã, Vilma Carrión, que teve que deixar o país. Leia a sentença na íntegra.

15 anos de espera

A família de Dina buscava esclarecimentos desde 3 de abril de 2010, quando ela apareceu morta no pátio da frente da casa em que vivia com o filho, então com 6 anos, e o marido, em meio aos trâmites de divórcio. Familiares diziam que o homem nunca permitiu que ela deixasse a residência, e ela teria aceitado, com medo de perder a guarda do menino.

Naquela noite, Dina iria levar o filho para uma viagem com a família dela. Saiu da casa de uma irmã e foi buscá-lo. O marido a recebeu e pediu que esperasse. O menino não apareceu, e Dina foi encontrada horas depois sem vida, com um tiro no peito.

Na época, as investigações concluíram que se tratava de um suicídio. Mas a família de Dina nunca acreditou nessa hipótese. Parentes chegaram a denunciar um suposto feminicídio cometido pelo então marido, Juan Carlos Siles, mas o caso acabou arquivado pela Justiça nicaraguense. Além disso, a família de Dina nunca mais teve contato com o filho dela, que foi isolado pela família paterna.

“Descobrimos o quanto ele (Juan Carlos Siles) era influente quando buscamos justiça”, disse Aida González, irmã de Dina, à Corte. “O pai dele tinha parentesco com juízes, trabalhou para o governo. Tinha conexões políticas”, disse.

Aida conta que, na mesma noite da morte, o pai de Juan Carlos ligou para o pai de Dina para convencê-lo que cremassem o corpo imediatamente. A família de Dina não autorizou. Uma das irmãs correu ao Instituto Médico Legal local com um documento que comprovava que o casal estava em processo de divórcio. Com isso, conseguiram ter acesso ao corpo de Dina, que tinha várias marcas de violência.

“Ela tinha golpes no rosto, escoriações nas mãos e lacerações na perna. Faltava um pedaço do dedo anelar esquerdo. Era um corpo que não atendia a um suposto suicídio. Na mesma noite, vizinhos disseram ter escutado tiros e visto um homem saindo numa caminhonete”, contou Aida na audiência.

Outra das irmãs foi à polícia denunciar o caso na mesma noite, mas a hipótese de feminicídio foi desconsiderada. A família custou a ter acesso ao expediente do caso. “Quando finalmente vimos o documento, havia uma série de incongruências. Uma página não tinha conexão com a outra. Havia números rasurados em vários trechos. Fotos faltando da cena do crime. Mostramos o expediente a outro perito, que apontou várias inconsistências nas investigações criminais e balísticas. O expediente dizia que havia manchas hemáticas na calça, sapatos e camisa de Juan Carlos. E Dina tinha tomado um golpe nas costas com um pedaço de pau, que não foi descrito”, disse Aida.

Além disso, contou, os investigadores disseram que a arma estava engatilhada com uma bala de calibre diferente da encontrada no corpo de Dina. E nunca explicaram por quê. Outra inconsistência, segundo Aida, foi que a investigação indicava que ela teria disparado no próprio coração com a mão direita, mas era canhota.

O advogado da família recorreu na Justiça, que demorou mais de um ano para responder à apelação – que foi negada. As irmãs e os pais de Dina buscaram organismos de direitos humanos e órgãos contra a violência contra as mulheres. Realizaram marchas, protestos, fizeram plantões na porta da Procuradoria-Geral e do Ministério Público.

Voto de Mudrovitsch

O juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte IDH, ressaltou em voto concorrente que as investigações da morte da vítima foram marcadas pelo manejo inadequado do local em que seu corpo foi encontrado, pela coleta deficiente de provas, pelo registro fotográfico inadequado e pela desconsideração de indícios de violência, além do recurso reiterado a estereótipos de gênero.

Segundo Mudrovitsch, a omissão do Tribunal seria especialmente danosa no contexto oscilante e hesitante da normatização do Estado da Nicarágua. Para ele, a necessidade desse tipo de intervenção pela Corte IDH fica evidente na situação em análise, pelas recorrentes alterações na legislação do país, caracterizadas por avanços e retrocessos na garantia da proteção integral da mulher.

O juiz brasileiro diz em seu voto que o direito internacional, inclusive no âmbito interamericano, não deixa margem de dúvida a respeito da existência da obrigação de adotar medidas penais para coibir a violência e a discriminação contra a mulher. Segundo ele, apesar de não possuir definição legal unânime, o feminicídio constitui expressão mais grave da violência contra a mulher e não se confunde com o homicídio tradicionalmente previsto nas legislações nacionais.

“Para que o delito seja classificado como feminicídio não basta o ato de matar uma mulher; a conduta típica demanda elemento especial: é necessário que o ato tenha sido cometido em razão de a vítima ser uma mulher. Não se trata, portanto, apenas de tutela do direito à vida das mulheres, muito embora esse constitua o elemento central do tipo”, destacou.

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“O cerne da violência contra a mulher e de sua expressão máxima, o feminicídio, é a sua própria condição de gênero, que corresponde ao fator mínimo que deve ser levado em consideração nas legislações nacionais sobre o tema”, prosseguiu Mudrovitsch. “Elementos normativos que visem diluir o papel da condição de gênero ou restringi-lo demasiadamente nos crimes relativos à violência contra a mulher devem ser evitados, na medida em que concretamente limitam o acesso das vítimas a uma justiça eficaz e se afastam dos parâmetros convencionais analisados até aqui”, explicou.

Desse modo, avaliou que o propósito da sistemática de proibição penal da violência contra a mulher, portanto, não é oferecer uma possibilidade de diálogo e apaziguar supostos conflitos entre as partes envolvidas, mas, sim, oferecer a máxima proteção à vítima, como forma de libertá-la de um ambiente de violência, e efetivamente responsabilizar o agressor.

De acordo com o juiz brasileiro, é necessário reconhecer que o mecanismo processual acolhido pela legislação vigente na Nicarágua acaba por negar a condição de desigualdade entre vítima e agressor. Mais do que isso, segundo ele, pode contribuir para revitimizar a mulher e impedir a justa aplicação da lei no seu mais amplo sentido protetivo.

“Os inúmeros obstáculos legislativos e judiciais que os familiares da sra. Carrión enfrentaram para elucidar as circunstâncias de sua morte ilustram com singular clareza a importância de que os Estados contem com um aparato jurídico adequado para o enfrentamento a toda forma de violência da mulher. Isso inclui, sem dúvidas, a correta tipificação do feminicído”, destacou o juiz.

Além disso, afirmou que a persistência de quadro legislativo incapaz de oferecer proteção suficiente contra uma das mais brutais formas de violência contra a mulher abre perigoso caminho para que situações de negligência e impunidade – tal qual ocorrido em relação à Dina Carrión – continuem a ocorrer. “Eis a razão fundamental que levou à Corte IDH, em sede de garantias de não-repetição, a ordenar a adequação do ordenamento do Estado da Nicarágua”, concluiu Mudrovitsch.

Relevância da sentença

Para Flávia Piovesan, professora-doutora da PUC-SP e ex-vice presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, este é um caso paradigmático, pois ele avança e fortalece o corpo juri-interamericano em matéria de proteção dos direitos humanos e, sobretudo, do direito a uma vida livre de violência.

Além disso, Piovesan acredita que a jurisprudência interamericana tem contribuído para que no campo local se possa avançar no enfrentamento ao feminicídio e na incorporação da perspectiva de gênero. “Eu creio que além de fortalecer toda a importância da incorporação da perspectiva de gênero, este case ainda avança, aprimora, consolida e refina parâmetros internacionais de devida diligência, com realce à devida diligência, que aqui se diz reforçada com a perspectiva de gênero”, afirma.

Outro ponto relevante mencionado por ela é que, por meio da sentença, a Corte IDH demanda que a Nicarágua harmonize a sua ordem jurídica à luz dos parâmetros interamericanos, realizando adequações normativas não só para garantir a investigação sobre a perspectiva de gênero, mas também para ajustar o tipo penal de feminicídio. 

Segundo ela, através da decisão do Tribunal, o sistema interamericano adota de forma expansiva a chamada reparação integral. “E o que seria a justiça para um caso tão grave envolvendo o feminicídio da vítima Dina? O que é justiça? É só demandar o pagamento de uma quantia, de uma idealização?”, indagou a especialista.

“Não, o sistema interamericano vai além e demanda não só medidas voltadas à investigação da morte das vítimas, mas garantias de não repetição fomentam mudanças estruturais para que isso não se repita mais, para que não mais se perpetue esse estado de coisas”, concluiu Piovesan. 

Na avaliação de Raisa D. Ribeiro, professora adjunta da Unirio e pesquisadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos (NIDH) da FND-UFRJ, a decisão da Corte no caso Carrión González continua refletindo um problema estrutural presente em toda a América Latina: a impunidade e a negligência estatal nos casos de violência de gênero.

De acordo com ela, ao condenar a Nicarágua, a Corte IDH fortalece o compromisso internacional com a proteção dos direitos das mulheres e reforça a obrigação dos Estados em garantir investigações sérias, justas e eficazes. Essa decisão, segundo ela, também serve de pressão para que outros países aprimorem suas políticas de proteção às mulheres, em especial de prevenção e de combate ao feminicídio.

“Assim como ocorreu com o Brasil, foi necessária uma condenação internacional para que a legislação já existente viesse a ser aprimorada”, destacou Ribeiro. Contudo, avalia que, apesar dos avanços jurídicos, ainda há um longo caminho a se trilhar até que todas as meninas e mulheres possam viver uma vida livre da violência.

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“A luta contra o feminicídio requer um compromisso contínuo de todos os órgãos do Estado para garantir que nenhuma mulher seja vitimada pela negligência do Estado em prevenir casos de violência, investigar e punir os agressores”, concluiu Ribeiro.

A advogada criminalista Flávia Rahal, do Rahal, Carnelós e Vargas do Amaral Advogados, acredita que, como toda decisão da Corte Interamericana, essa também serve como fundamento para a resolução de processos no Brasil. Segundo ela, a sentença prescinde o caso concreto e possui um alcance ainda maior, visto que ela define padrões para a questão dos direitos humanos, para além do caso julgado e para além, inclusive, do país em relação ao qual ela está sendo imposta.

Rahal, que também é ex-presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), ressalta ainda que a decisão da Corte IDH é “profundamente relevante”, e ganha ainda mais relevância por trazer a incorporação da perspectiva de gênero na apreciação que foi feita pelos julgadores do Tribunal. “Ou seja, a questão de olhar o crime, como hoje nós temos no Brasil, a tipificação do feminicídio, sob exatamente a perspectiva de um crime que acontece em virtude do gênero feminino, motivada por razões ligadas ao gênero feminino”, ilustra.

“Então, a decisão é fundamental exatamente para que a gente compreenda a importância que se tem num caso de morte de uma mulher, numa relação, pelo que eu vi, que era caracterizada por violência, na qual existia um abuso psicológico e verbal, que isso seja levado em consideração”, afirma a especialista.

Na avaliação de Rahal, já se tem caminhado nos últimos tempos para um fortalecimento da consciência e da preocupação em se proteger a mulher em relações de naturezas mais tóxicas.

Por essa razão, acredita que, em um caso como o de Dina Carrión e levando em consideração a importância da Corte e a repercussão que a sentença tende a ter, cresce a preocupação e a necessidade de que as autoridades nacionais também tragam e projetem nas suas investigações essa perspectiva de gênero.

Demais reparações impostas

Além de fixar um valor reparatório aos familiares de Dina Carrión, a Corte IDH ordenou que a Nicarágua reembolse cerca de US$ 2.538,36 ao Fundo de Assistência Jurídica das Vítimas da Corte Interamericana, levando em consideração as violações declaradas na sentença.

O Tribunal também determinou que, no prazo de dois anos, contados a partir da notificação da sentença, o Estado da Nicarágua, deverá adotar as medidas necessárias para eliminar ou restringir a procedimentos de mediação e conciliação em todos os crimes que envolvam violência contra as mulheres.

Além disso, estabelece que a Nicarágua adote medidas relevantes, incluindo quaisquer reformas regulamentares necessárias, para garantir que os processos relacionados à situação de crianças e adolescentes afetados por um possível feminicídio de sua mãe seja processado com diligência e celeridade excepcionais, e que ainda sejam dotadas de medidas adequadas de acordo com o melhor interesse da criança.

Segundo a sentença, a Nicarágua ainda deve implementar um programa ou curso obrigatório voltado para operadores judiciais em processos de mortes potencialmente ilícitas de mulheres, ou pessoas responsáveis ​​por receber denúncias de violência de gênero.

Também deve instituir um programa de conscientização e treinamento com protocolos de ação para juízes em assuntos relativos à situação de crianças e adolescentes afetados pela morte potencialmente ilícita da mãe em possíveis casos de feminicídio. Por fim, determina que seja criado um observatório que inclua uma base de dados para coleta sistemática e periódica de informações estatísticas sobre violência de gênero, abrigos e atendimento especializado a vítimas de violência de gênero.

Participaram da emissão da sentença os juízes: Nancy Hernández López, presidente (Costa Rica); Rodrigo Mudrovitsch, vice-Presidente (Brasil); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).