Competências comuns e condenações solidárias

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Nas ações coletivas ambientais, é comum que o polo passivo seja composto por mais de um ente da federação. A suposta omissão nos deveres de proteção, oriundos de competência material comum (arts. 23, VI e VII, e 225 da Constituição), levaria à legitimidade passiva de todos os entes em ações que, não raro, geram a condenação solidária destes em obrigações de fazer e pagar.

Intuitivamente, buscar a responsabilização de mais de um ente pode significar o aumento da eficácia da decisão judicial. Mais corresponsáveis significariam mais chances de a condenação ser cumprida. Mas será que esse objetivo vem sendo atendido? E, dogmaticamente, a previsão de uma competência comum leva necessariamente à conclusão de que, não alcançado o resultado desejado, todos os entes se omitiram?

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A premissa de que mais responsáveis significam maior chance de cumprimento das obrigações, em tese, parece fazer sentido. Entretanto, a prática da judicialização em matérias de competência comum tem revelado um cenário mais complexo.

Trazer ao processo mais partes, todas elas com prerrogativas fazendárias, leva a processos mais demorados e complicados. Tratando-se de pleitos de intervenções ambientais como manutenção de encostas, desassoreamento de corpos hídricos, instalação de esgotamento sanitário, entre outros, é comum que se desenvolvam discussões técnicas alongadas, com perícias infindáveis e, muitas vezes, pouco produtivas.

Ao final de décadas de tramitação, a condenação solidária em matéria ambiental pode gerar uma fase executiva ainda mais difícil. Não raro, as condenações são genéricas, exigindo novas discussões, estudos e diversas rodadas de audiências para definir quais medidas, de fato, precisam ser implementadas.

Em sequência, é necessário definir o escopo do que cada ente irá executar, observando as competências constitucionais e capacidades institucionais. Idealmente, as ações devem ser coordenadas, de maneira a evitar sobreposições, ineficiências e gastos desnecessários para o erário. A indefinição dificulta a ação até dos gestores públicos mais bem-intencionados.

A tutela coletiva do direito ambiental parece viver um cenário parecido com o de outro direito fundamental de competência comum: a saúde.

A judicialização da saúde pública, com um acervo de quase 500 mil processos,[1] é há muito conhecida e estudada no Brasil. Embora possa resolver casos pontuais, o fenômeno é percebido, em geral, como gerador de caos institucional e desigualdade.

Na saúde, a boa intenção de realização da justiça no caso concreto impulsionou um fenômeno de condenação solidária dos entes públicos, com fundamento na competência comum prevista nos arts. 23, II, 196 e ss. da Constituição. Sem atenção à devida repartição de competências na matéria feita pela Constituição e pela Lei 8.080/90, condenações judiciais foram relegadas à inefetividade ou à extrema dificuldade de cumprimento, como ocorre nas ações ambientais.

Após anos de dificuldades nas ações sobre saúde pública, que colocaram em xeque a efetividade da jurisdição, o Supremo Tribunal Federal editou as recentes Súmulas Vinculantes 60[2] e 61[3]. Nelas, tenta organizar a tutela judicial desse direito fundamental. No Tema 1.234, fruto de acordos interfederativos, há uma detalhada indicação de que tipo de prestação cabe a cada esfera.

Consolidaram-se anos de esforço da jurisprudência em parametrizar a concessão de medicamentos, por meio de temas de repercussão geral e de recursos repetitivos. A responsabilidade solidária, que antes era vista como solução para garantir o cumprimento das obrigações, passou a sofrer mitigações.

Consolidou-se a ideia de que o cumprimento deveria ser direcionado segundo critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, independentemente da natureza solidária da condenação (Tema 793 de RG).[4] Demandas que envolvam medicamentos fora do protocolo do SUS e não aprovados pela Anvisa devem ter a União como litisconsorte necessária (Tema 500 de RG).[5]

Percebeu-se que a sentença transitada em julgado vale pouco sem uma fase executiva exitosa. Entretanto, essa evolução de entendimento, conquistada após décadas de litígios, ainda não alcançou outras áreas, nas quais condenações amplas e solidárias ainda são a regra.

Para além das consequências práticas, parece dogmaticamente equivocada a conclusão de que a não realização de um direito relacionado a uma competência comum levaria necessariamente à responsabilidade solidária. Afinal, não se pode concluir que todos os entes se omitiram ilicitamente simplesmente pelo não alcance de um resultado constitucionalmente desejável. Nos casos em que se possam extrair do ordenamento jurídico normas mais concretas do que a genérica competência comum, não há motivo para que a jurisdição se esquive de fazê-lo.

Exemplo claro são as demandas envolvendo saneamento básico. Não há mais dúvidas de que o município é o titular dos serviços de saneamento básico, por envolver interesse local, nos termos do art. 30, V, da Constituição e do art. 8º, I, da Lei 11.445/2007.[6] No entanto, persistem decisões que condenam solidariamente outros entes a implementar medidas amplas, com fundamento em competências comuns de direito ambiental. Tais decisões desafiam as divisões constitucionais e legais de competências, gerando conflitos na execução e prejudicando a efetividade das medidas.

Pela própria efetividade da jurisdição, a jurisprudência precisa amadurecer no sentido de criar critérios objetivos para a imposição de responsabilidades em matérias de competência comum, considerando o arcabouço jurídico setorial, que variará entre as inúmeras questões abarcadas pela competência ambiental.

Tal como vem ocorrendo em saúde, é necessário estabelecer diretrizes que assegurem que as ações só sigam contra o ente efetivamente responsável. Nos casos de condenação solidária, o cumprimento deve ser direcionado de forma clara, considerando capacidades institucionais. A promoção do direito transindividual só tem a ganhar.


[1] https://www.cnj.jus.br/semana-nacional-da-saude-no-judiciario-impulsionara-julgamento-de-processos/#:~:text=Segundo%20as%20estat%C3%ADsticas%20apresentadas%20no,novos%20processos%20sobre%20o%20assunto.

[2] Súmula Vinculante 60: “O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos três acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral”.

[3] Súmula Vinculante 61: “A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471)”.

[4] “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.”

[5] “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

[6] STF – ADI 4.454/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno (5.8.2020).