Há, no Brasil e no mundo, muitas iniciativas de transparência, participação e governos abertos que ampliam o acesso à informação e a incidência do cidadão sobre o poder público. Nunca tivemos tanta informação disponível e mecanismos para acessá-la. É possível então dizer que superamos a cultura da opacidade e do segredo? Não. Vivemos em uma era de reinvenção da opacidade em arranjos legais e societários, muitas vezes em fluxos financeiros entre jurisdições. Contudo, em um duplo movimento, surgem novas demandas de reconstrução do arcabouço de transparência, em especial voltada à transparência financeira.
A promoção da transparência e da integridade no Brasil está em diversas passagens da Constituição (art. 37, caput e 5º, XXXIII). A condição para a construção de um arcabouço jurídico-institucional de maior prestação de contas e transparência se desenvolveu ao longo das décadas, de forma incremental e, muitas vezes, orientado para resolver problemas específicos de governança da ação pública.[1]
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Esse processo de progressiva abertura, centralização e organização das informações públicas necessárias à consecução de políticas públicas[2]. culminou na promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI), que consolidou o sigilo como exceção na ação pública. Quase triplicou o número de pedidos feitos via LAI em uma década: de 55 mil pedidos em 2012 para 135 mil em 2020. Empresas e indivíduos também passaram a ter deveres de transparência em suas relações com investidores e especialmente quando interagem com o Estado. É o caso para contratos publicizados em portais da transparência com empresas e organizações não governamentais.
No entanto, desafios persistem. A opacidade dada por regras de sigilo bancário e fiscal em diversos países, ou pela complexidade de estruturas societárias em múltiplas camadas, obstaculariza autoridades e cidadãos de acessarem informações sobre o patrimônio de certos indivíduos ou sobre quem de fato se beneficia de contratos públicos. A complexidade de regular transparência financeira contribui para a reinvenção da cultura de segredo, de forma mais pulverizada e sofisticada, e fora do alcance de políticas de integridade e transparência domésticas.
Os contornos desse desafio transnacional exigem respostas também coordenadas entre múltiplas jurisdições. Uma estratégia para aumentar a transparência desses fluxos que vêm ganhando tração internacional é o requisito de identificação do beneficiário final dessas estruturas, ou seja, a pessoa natural que, em última instância, possui direitos, controla, influencia ou usufrui, direta ou indiretamente, do arranjo legal ou estrutura societária.
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A transparência aos beneficiários finais está prevista na Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (2003), nas recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) em 2003, revistas em 2012 e fortalecidas em 2023. Nestas inscrições, transparência está conectada ao objetivo de prevenir e facilitar a identificação de atos de lavagem de dinheiro. Em 2014[3], o Grupo de Trabalho de Anticorrupção do G20 elencou a transparência de beneficiários finais como de alta prioridade, considerando os riscos mais amplos de arranjos legais opacos, não se limitando ao problema de lavagem de dinheiro e levando a discussão a um novo patamar. O G20 sugeriu a implementação de registros centralizados das informações das pessoas naturais, com acesso adequado, preciso e atualizado para autoridades competentes, incluindo de outras jurisdições.
Até 2023, 130 países se comprometeram a implementar medidas de transparência de beneficiários finais. Dilemas persistem tanto na definição de beneficiário final que dispara requerimentos de transparência, quanto no acesso a esses dados por autoridades e pela sociedade civil.
O assunto é de especial relevância para contratos públicos. Dados sistemáticos e atualizados de beneficiários finais[4]. podem ajudar preventivamente a identificar empresas com históricos problemáticos, ou para detecção de irregularidades e fraudes. As informações também permitir uma análise de risco mais precisa sobre os vínculos entre empresas e beneficiários, auxiliando, por exemplo, na identificação de conflitos de interesse. Por fim, elas podem ser ferramenta para uma concorrência mais efetiva e justa, garantindo que incentivos para contratações preferenciais, como acesso facilitado para pequenas e médias empresas, conteúdo nacional ou empresas lideradas por minorias, sejam de fato respeitados.
Em 2024, o Grupo Anticorrupção do G20, reunido no Brasil, refez seu compromisso com o aperfeiçoamento de mecanismos de beneficiário final. Há um futuro promissor para reinvenção da transparência, seja para identificação de irregularidades quanto para melhoria do controle social.
[1] DA ROS, Luciano; TAYLOR, Matthew M. Brazilian politics on trial: corruption and reform under democracy. Lynne Rienner, 2022. p. 53-54.
[2] Marcos legislativos anteriores à Lei de Acesso à Informação pavimentaram o direito à informação no Brasil. Primeiro, a lei 8.159/1991 instituiu formalmente o direito de acesso a documentos públicos. Ela não previu o fim do sigilo eterno, o que permitiu que governos posteriores se aproveitassem dessa lacuna legislativa para mitigar o acesso à informação. Nos anos posteriores, criação da CGU, em 2003, a implantação do Portal da Transparência, em 2004, e a aprovação da Lei da Transparência, em 2009, criaram a infraestrutura da transparência no Brasil.
[3] G20, High-Level Principles on Beneficial Ownership Transparency, 2014. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/corruption/G20-Anti-Corruption-Resources/Thematic-Areas/Private-Sector-Integrity-and-Transparency/G20_High_Level_Principles_on_Corruption_and_Growth_2014.pdf.
[4] OPEN OWNERSHIP. Driving the global shift towards beneficial ownership transparency. Disponível em: https://oo.cdn.ngo/media/documents/Introduction_to_BOT_and_OO.pdf