A implementação de uma política nacional de testagem genética para as mutações BRCA no SUS busca um objetivo claro: prevenir e tratar. Segundo os dados levantados pela Femama e pela Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), o câncer de mama é o tipo mais frequente entre as brasileiras (1 a cada 3) e o que mais mata mulheres no Brasil, o equivalente a 16% de todas as mortes por câncer.
Seja por ineficiência ou descaso, o diagnóstico inicial chega a 50 dias, e 41,2% dos casos no SUS são detectados em estágios avançados da doença (III e IV), reduzindo significativamente as chances de sobrevivência. Já o câncer de ovário, considerada uma doença silenciosa, é o segundo mais comum entre as neoplasias ginecológicas, com uma taxa alarmante de diagnóstico tardio em 77% dos casos.
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A relação direta entre esses dois tipos de câncer hereditário e as mutações nos genes BRCA1 e BRCA2[1] torna a testagem genética indispensável para detecção precoce e planejamento preventivo. Essas variantes genéticas não apenas aumentam a probabilidade de câncer nos pacientes afetados, mas também podem ser transmitidas aos familiares, independentemente do gênero.
Assim, a disponibilidade de painéis genéticos que detectam essas mutações é crucial, pois permite que profissionais de saúde estabeleçam condutas clínicas mais precisas, ajudem a evitar recidivas, incentivem o diagnóstico precoce e protejam outros familiares com risco elevado.
Hoje, apesar de seu valor preventivo, a testagem BRCA no Sistema Único de Saúde (SUS) ainda é limitada a poucos estados, como Goiás. Porém, a recente Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (Lei 14.758/23) trouxe novas diretrizes para tornar a testagem genética acessível a quem tem risco elevado de desenvolver câncer hereditário.
Nesse contexto, entrevistamos especialistas que recomendaram caminhos para a universalização do teste BRCA no SUS até 2026. Indicando que essa universalização exige uma ação coordenada do governo federal com o legislativo e entre os entes federativos para o desenvolvimento de diretrizes clínicas nacionais, capacitação de profissionais, aproveitamento de infraestrutura existente e investimentos estáveis no eixo da estrutura assistencial[2].
Ações prioritárias para universalização até 2026
A implementação de uma política nacional requer a criação de diretrizes clínicas claras, que devem ser construídas a partir de experiências existentes e com o apoio de sociedades médicas e instituições de referência.
A Dra. Maira Caleffi[3] destaca que “a primeira ação seria construir as diretrizes clínicas a partir de experiências existentes, literatura especializada e do apoio das sociedades médicas e instituições de referência no setor, como a própria Femama, que disponibilizou ao Ministério da Saúde um Policy Paper chamado Implementação de política pública para o acesso aos testes genéticos na detecção de mutações em BRCA no SUS, que tem justamente o intuito de prestar esse apoio técnico.”, conclui a médica.
Outro ponto fundamental é a necessidade de inserir a testagem no fluxo de cuidado de câncer de mama e ovário, o que envolve a capacitação de profissionais da saúde em todos os níveis, desde a Atenção Primária até os centros de referência em Oncogenética.
A Dra. Carolina Martins Vieira[4] ressalta a importância de treinar equipes para identificar pacientes elegíveis e realizar o aconselhamento genético de forma eficiente. Segundo a Dra. Vieira, “começar com a capacitação profissional, da atenção primária à atenção quaternária, com definição do papel de cada profissional é essencial”, considerando que atualmente não há um ambiente favorável para a formação de profissionais capacitados nessa área.
Na Atenção Primária, é necessário identificar pessoas elegíveis e conscientizar familiares sobre a testagem, enquanto na atenção secundária, os serviços de saúde devem sinalizar às mulheres sobre a necessidade do teste. Além disso, a Dra. Vieira destaca a importância de organizar laboratórios e centros de referência, bem como estruturar os processos e fluxos de testagem, a criação de códigos SIGTAP[5], e a articulação eficiente entre as instituições.
O Brasil já possui uma infraestrutura de equipamentos de sequenciamento genético adquiridos durante a pandemia, distribuídos nos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (LACEN), mas permanecem subutilizados. Segundo Caleffi, reativar esses equipamentos para a testagem de mutações BRCA é uma estratégia viável e econômica.
Ela também destaca que, além do aumento de orçamento para ampliar a testagem em larga escala, as parcerias público-privadas são uma solução promissora. “Durante a pandemia, muitos equipamentos foram adquiridos e estão ociosos. Podemos implementar a testagem de forma eficaz, desde que haja empenho em aproveitar os recursos já disponíveis no sistema, tanto público quanto privado”, conclui.
Para que a implementação da testagem no SUS seja sustentável e eficiente, o Dr. Gustavo Ribas[6] reforça a necessidade de, “destinação de recurso com previsão de estruturação de toda a cadeia de investimento assistencial, com estrutura física das unidades, capacitação multiprofissional nos 3 níveis de atenção à saúde, instituição de projetos de incorporação de tecnologia de equipamentos, softwares, plataformas de análise, insumos, modelo nacional de testagem, [e] monitoramento de dados em saúde”. Isso garantirá que o processo seja sustentável e eficiente.
Paralelamente, a telemedicina emerge como uma solução promissora para ampliar o acesso a consultas de genética oncológica em regiões remotas, integrando iniciativas como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RDNS) e o programa Mais Acesso a Especialistas, lançado em abril de 2024 pelo Ministério da Saúde. Além disso, plataformas de inteligência artificial, como a Weconecta, possibilitam a identificação precoce de pacientes de risco, facilitando intervenções rápidas e eficazes (Femama, 2024).
Projetos-piloto como o “Goiás Todo Rosa“, lançado em 2023 pelo governador Ronaldo Caiado, já demonstram o potencial da testagem em nível estadual e podem servir de base para uma implementação nacional. Esses projetos geram dados cruciais para ajustar a infraestrutura e garantir a integração da testagem BRCA às redes de saúde regionais.
O modelo de Goiás mostra que é possível replicar essas iniciativas em todo o país, facilitando a implementação e o uso otimizado dos recursos. Ainda, para Caleffi, “Uma alternativa é iniciar projetos piloto junto a instituições que se sintam preparadas para tal. Os projetos pilotos são de extremo valor para trazer experiência e gerar informação para uma etapa posterior de expansão da política para todo o território nacional.”
Desafios e coordenação em cenário eleitoral
O Congresso Nacional desempenha um papel estratégico, uma vez que leis relacionadas à testagem BRCA estão em tramitação, como o PL 265/2020[7]. “O Legislativo pode pautar o debate público e pressionar o Executivo a tomar decisões rápidas”, afirma Caleffi.
Atualmente, o Legislativo federal tem em suas mãos pelo menos três projetos de lei sobre a testagem genética de BRCA. “A Femama tem articulado o PL 265/20 que está hoje para votação no plenário da Câmara dos Deputados, esperando que a presidência da casa paute para votação. Se o Legislativo fizer sua parte, sem dúvida conseguiremos levar essa discussão a um outro nível, uma vez que a ‘casa do povo’ tem esse poder de pautar o debate público e o poder executivo com as demandas mais importantes para a sociedade. Estamos falando aqui de medicina de precisão, de inovação, de tecnologia, de ciência de ponta. O tema da saúde mobiliza parlamentares de todos os espectros políticos pela sua própria importância social. Precisamos transformar isso em ações concretas”, ressalta Caleffi.
“Precisamos engajar governos municipais e estaduais, pois esse é um tema que precisa contar com o apoio de todos, sobretudo naqueles estados que já tem legislação própria, cujos projetos-piloto podem servir de referência para todo o país. Por fim, a conscientização populacional está em baixa. Cabe ao Ministério da Saúde apoiar nesse sentido, tornando a testagem genética mais conhecida entre a população”, afirma Vieira.
Para a Femama, autoridades federais, estaduais e municipais podem atuar em sinergia para antecipar desafios e planejar os recursos necessários à implementação de um programa nacional de testagem. Os projetos piloto oferecem aos gestores de saúde uma visão estratégica para a implementação de um programa nacional de testagem genética.
Essas iniciativas não só ajudam a projetar a demanda de testes ao longo do tempo, mas também a definir com mais precisão o orçamento e os recursos financeiros, considerando critérios de elegibilidade bem estabelecidos nas diretrizes clínicas. Além disso, o aprendizado gerado permite planejar a capacitação profissional adequada, organizar um fluxo regulado de pacientes, criar códigos SIGTAP para reembolso e adquirir os equipamentos e insumos laboratoriais essenciais.
Com as eleições de 2026 se aproximando, a articulação entre governo federal, legislativo e estados se torna um fator decisivo. Assim, a proximidade eleitoral pode ser uma oportunidade para colocar o tema da testagem genética no centro das discussões políticas.
Ribas defende uma estratégia ampla de governança social da pauta, “através da interlocução intersetorial, comissões de gestão tripartite, atrair investimentos do 3o setor, parcerias público-privadas, modelos de assistenciais com hospitais escola. A construção da Política não se faz sem a participação de Organizações sociais de direitos dos pacientes (advocacy), sociedades de classe, poder público constituído, gestores especialistas e o controle social”, conclui o oncologista.
Conclusões
Existem recomendações claras sobre os caminhos para a universalização da testagem BRCA no SUS até 2026, desde que haja uma coordenação eficiente entre os níveis de governo e uma utilização otimizada dos recursos já disponíveis.
O Brasil tem a oportunidade de liderar a medicina de precisão na América Latina, garantindo diagnósticos mais rápidos e precisos, beneficiando milhares de pacientes e seus familiares. Com planejamento adequado e articulação política, é possível transformar a saúde pública, reduzindo a mortalidade e os custos relacionados ao câncer.
[1] BRCA1 e BRCA2: são genes supressores de tumor, uma vez que atuam no reparo do material genético. Quando há uma mutação patogênica nestes genes, eles passam a não funcionar de maneira adequada, permitindo crescimento descontrolado das células, proporcionando o desenvolvimento do câncer (NCI, 2020 apud Femama, 2024).
[2] O eixo da estrutura assistencial corresponde àquele onde estão incluídos os recursos físicos e humanos necessários para operacionalizar a testagem (Femama, 2024).
[3] Mastologista, chefe do Núcleo da Mama do Hospital Moinhos de Vento e fundadora e presidente da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (FEMAMA) e do Conselho do Instituto de Governança e Controle do Câncer (IGCC).
[4] Oncologista do Grupo Oncoclínicas.
[5] SIGTAP: Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e Órteses, próteses e materiais especiais (OPM) do SUS (Femama, 2024).
[6] Oncologista e gestor da Assessoria de Política de Prevenção e Controle do Câncer (ASCAN/SAIS) da Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
[7] Com a autoria das deputadas federais: Rejane Dias (PT-PI) , Tereza Nelma (PSDB-AL) , Marina Santos (PL-PI).