Em abril de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestou no Tema Repetitivo 1.143, afirmando: “O princípio da insignificância não se aplica aos crimes de contrabando de cigarros, por menor que seja o dano patrimonial, pois a conduta afeta bens jurídicos relevantes, como a saúde, a segurança e a moralidade pública”.
Essa decisão teve pouca repercussão, porquanto há também normas administrativas que proíbem a entrada de produtos no Brasil sem o devido cumprimento das regras nacionais, as quais se mantém válidas e aplicáveis.
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Não obstante, no que diz respeito à norma penal, de algum tempo para cá a conduta típica já sofre certa relativização, a exemplo do Enunciado 90 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, emitido em março de 2020:
“É cabível o arquivamento de investigações criminais sobre contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não superar 1.000 maços, seja pela reduzida gravidade da conduta, seja pela necessidade de concentrar esforços na repressão ao contrabando em grande escala. Casos de reiteração serão analisados individualmente”.
Nessa direção, o próprio STJ, nos REsp 1.971.993/SP e 1.977.652/SP, revisou seu entendimento e passou a admitir a aplicação do princípio da insignificância para o contrabando de até 1.000 maços de cigarros, desde que não haja reiteração da conduta:
“O princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 maços, devido à reduzida reprovabilidade da conduta e à necessidade de dar efetividade à repressão do contrabando em grande escala”.
Esse novo posicionamento, gera alguns impactos que a Análise Econômica do Direito pode esclarecer (RODRIGUES, 2021). No Código Penal, por exemplo, o art. 318 criminaliza a facilitação do contrabando (crime praticado por agente público), e o art. 334-A define o próprio crime de contrabando (crime praticado por particular).
No entanto, não há solução legal para os efeitos sobre o primeiro tipo quando o segundo é afastado por insignificância, tampouco o STJ esclareceu o que deve ser feito nessas situações em que há uma imbricação de mais de uma conduta, criando uma aparente tensão entre a aplicação de princípios e a objetividade das regras (RODRIGUES e SHIKIDA, 2024).
Do ponto de vista juseconômico, surgem alguns questionamentos relevantes: como explicar para um comerciante que vende cigarros de forma regular, pagando impostos e cumprindo a lei, que ele está em desvantagem frente àquele que distribui cigarros contrabandeados, mais baratos e com maior margem de lucro? Não deixa de ser um incentivo para uma migração do produto lícito para o ilícito, precarizando o setor formal (NICOLA, MARGARIDO e SHIKIDA, 2020 e 2022).
Quanto aos advogados, essa decisão abre precedentes para a aplicação do princípio da insignificância em outros casos, como o contrabando de eletrônicos. Afinal, se o princípio é aplicado em casos que envolvem riscos à saúde pública, por que não estender a outras situações?
Para o agente público, a decisão traz desafios operacionais: 1.001 maços configuram crime? Qual é o número exato de cigarros em um maço? Quantos gramas precisa ter um cigarro? Se três pessoas viajam juntas em um ônibus e trazem 1.000 maços cada uma, a soma é crime? Abre-se, portanto, uma interpretação que incentiva atividades ilegais ao transmitir a mensagem de que certas ações delituosas, por menores que sejam, podem passar impunes.
Do ponto de vista econômico, essa flexibilização gera incentivos contraditórios. Vale mais a pena seguir as regras e produzir/vender cigarros legalmente no Brasil, assumindo o custo de todas as externalidades positivas associadas (empregos e arrecadação de impostos)?
Ou é mais vantajoso operar no mercado ilegal transferindo aqui uma série de externalidades negativas para a sociedade (problemas fitossanitários, diminuição de receita fiscal e expansão do crime organizado, cooptação de crianças e adolescentes para o trabalho nessa atividade etc.)? É importante lembrar que, embora o consumo de cigarros sempre envolva externalidades negativas, essas são potencialmente maiores no caso de cigarros contrabandeados.
Essa discussão vai além do contrabando de cigarros – trata-se de uma questão de insegurança jurídica. O Judiciário, ao flexibilizar a aplicação de regras claras, cria exceções que geram incertezas no ambiente de negócios.
A intervenção judicial deve se limitar ao necessário para garantir a aplicação correta das normas, sem gerar incertezas econômicas, políticas e sociais. Afinal, como é ensinado nas primeiras aulas de Direito, uma norma só pode ser alterada por outra de igual ou superior hierarquia. O excesso de flexibilizações pode corroer a confiança no sistema legal e comprometer a competitividade do país.
O dilema dos 1.000 maços de cigarros transcende a discussão sobre o princípio da insignificância e expõe um debate mais profundo acerca da interferência do Judiciário na aplicação da norma e em questões de natureza política, econômica e social.
A decisão judicial, ao modular a aplicação de uma regra penal, não apenas cria exceções normativas, mas também produz consequências amplas e não intencionais em outros setores. Assim, a escolha do magistrado não deve se limitar à análise isolada do caso concreto, mas precisa considerar o impacto sistêmico de suas decisões.
Cada interferência gera incentivos e desincentivos que afetam comportamentos individuais e coletivos, com repercussões sobre a economia formal e informal, a competitividade empresarial e até a arrecadação estatal. Dessa forma, é imprescindível que o Judiciário, ao decidir, compreenda o ecossistema mais amplo no qual suas decisões se inserem, planejando de forma consciente as interferências desejadas e seus potenciais reflexos (SHIKIDA, 2021). Somente com essa visão sistêmica será possível garantir maior segurança jurídica e contribuir para a construção de um ambiente de negócios mais previsível e equilibrado.
NICOLA, M.L.; MARGARIDO, M.A.; SHIKIDA, P.F.A. Análise da estratégia de redução do consumo de tabaco (…). Revista Planejamento e Políticas Públicas, n. 55, p. 295-329, jul./set. 2020.
NICOLA, M.L.; MARGARIDO, M.A.; SHIKIDA, P.F.A. Nota técnica: uma análise sobre a estratégia de elevação de preço via tributação ou preço mínimo para redução do consumo de tabaco no Brasil. Informe Gepec, v. 26, n. 2, p. 314-331, jul./dez. 2022.
RODRIGUES, F.A. Análise econômica da expansão do direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2021.
RODRIGUES, F.A.; SHIKIDA, P.F.A. O Estado insignificante para o contrabandista e grande para o contribuinte: a descriminalização do contrabando de cigarro no Tema n.º 1.143 – STJ. CARVAHO, Ivan Lira; CORDEIRO, Maria Eugenia Batista. Novas dinâmicas do direito penal econômico: do compliance à responsabilidade penal na era digital. Natal: Insigne Acadêmica, 2024.
SHIKIDA, P.F.A. Aspectos do trabalho de crianças e adolescentes no contrabando de cigarro em três cidades fronteiriças brasileiras. Revista Práticas de Administração Pública (PAP), v. 5, n. 2, p.29-49, maio/ago., 2021.