Em coluna anterior, já tive a oportunidade de tratar do instigante livro de Mariana Mazzucato e Rosie Collington sobre o papel crescente das consultorias privadas nos governos e os diversos riscos daí decorrentes.
Também já tive oportunidade de tratar do sensacional livro de Naomi Klein sobre “a doutrina do choque”, que ressalta o quanto crises e catástrofes podem ser excelentes oportunidades para restringir direitos e esvaziar o Estado e políticas públicas, aproveitando a confusão social e o enfraquecimento institucional que costumam caracterizar tais episódios para emplacar medidas antipopulares que, em outras circunstâncias, encontrariam grande resistência.
Ao que parece, a reconstrução do Rio Grande do Sul após a tragédia das enchentes será um excelente estudo de caso para as duas teses, diante da contratação de famosas consultorias privadas – McKinsey, Ernest Young e Alvarez & Marsal – que podem aproveitar a oportunidade da reconstrução do Estado para implementar medidas muito mais em prol do interesse de grandes agentes econômicos do que dos interesses da população.
Nesse sentido, a interessante reportagem “Alvarez & Marsal, McKinsey e EY: capitalismo de desastre toma a frente na reconstrução do RS” entrevista o sociólogo e professor do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) Victor Marchezini. Fazendo alusão precisamente ao livro A Doutrina do Choque, de Naomi Klein, o professor mostra os riscos de que se aproveitem tragédias como a gaúcha para implementar oportunidades de negócios privados que não ocorreriam em situações de normalidade.
No caso do Rio Grande do Sul, tais negócios se referem à contratação de consultorias estadunidenses, o que desperta problemas que vão além do benefício a interesses privados. Com efeito, segundo Marchezini, se a reconstrução for pautada pela lógica do mercado, as cidades serão reerguidas por meio do aprofundamento do modelo de desenvolvimento que causou o desastre, já que este não decorreu apenas das chuvas, mas sim da forma de ocupação do território.
Com efeito, no caso do Rio Grande do Sul, campos da serra foram aplainados para plantação de soja, o que reduziu a cobertura vegetal, assoreou os rios e fez com que a água caísse mais rápido. Daí o argumento de que, se o desastre resulta de um modelo econômico, a reconstrução exige, antes de tudo, uma reflexão sobre esse modelo. Consequentemente, não pode ser orientada pela mesma lógica do passado nem ser capitaneada pelos mesmos grupos políticos e econômicos que foram responsáveis pela degradação dos últimos anos.
No caso específico da McKinsey, a reportagem cita o livro Nos bastidores da McKinsey, de Duff McDonald, ao afirmar que a companhia ajudou “empresas e governos a criar e manter muitos dos comportamentos corporativos que moldaram o mundo em que vivemos”.
Já no caso da Alvarez & Marsal, a reportagem descreve o que ocorreu quando a consultoria gerenciou a reconstrução de Nova Orleans após o furacão Katrina: implementação de um verdadeiro plano de privatização espelhado em Milton Friedman, com distribuição de vouchers para acesso a serviços essenciais. No caso da educação, em 19 meses, 318 escolas foram privatizadas – sobrando apenas 4 escolas públicas, com uma maciça dispensa de professores.
A reportagem chega a citar depoimento do American Enterprise Institute, entidade ligada à promoção dos interesses corporativos, dizendo que o Katrina realizou em um dia o que os reformadores educacionais da Louisiana tentaram fazer durante anos. Entretanto, os resultados concretos não foram tão promissores: o prefeito que estava à frente da reconstrução foi preso por fraude, suborno e lavagem de dinheiro, Nova Orleans hoje tem 200 mil habitantes a menos e a área do distrito histórico, antes habitada pela população negra e pobre, foi reconstruída para viabilizar negócios.
Dessa maneira, o exemplo de Nova Orleans pode mostrar como os riscos de consultorias se potencializam em casos de crise, quando elementos da doutrina do choque podem ser facilmente implementados, muitas vezes sem a deliberação democrática, sem transparência e sem o necessário escrutínio público tanto na tomada da decisão como na sua execução e acompanhamento de resultados.
O fato de algumas dessas consultorias serem pro bono não só não resolve o problema como pode criar outros, até porque deflagra a discussão sobre os reais interesses de tais consultorias nos respectivos contratos e os ganhos indiretos que podem obter. Dentre estes, o acesso a informações públicas estratégicas – que depois poderão ser vendidas a preço de ouro no mercado – pode ser fator que, por si só, desperta a necessidade de maior atenção com tais contratos.
De toda sorte, aponta a reportagem que situações de crise deveriam ser oportunidades para o estabelecimento e fortalecimento de uma grande coalizão com as pessoas – e não somente com as corporações – assim como novas reflexões sobre a ideia e o sentido da riqueza.
As mesmas preocupações foram trazidas em reportagem da BBC News, que também destacou a crítica à participação da Alvarez & Marsal, diante da sua associação a políticas de desregulação e privatização de serviços. A reportagem entrevistou Kenneth Saltman, autor do livro Capitalizing on disaster: taking and breaking public schools, que mostra como a consultoria foi determinante para a implementação da agenda de privatização e elitização das escolas públicas locais em Nova Orleans:
Saltman afirmou, por e-mail, à BBC News Brasil: “Em razão da folha corrida da A&M em possibilitar a privatização e a destruição das escolas públicas de Nova Orleans e do seu envolvimento na demissão em massa de professores e no desmantelamento ilegal de seu sindicato, qualquer um que se preocupe com a educação pública deveria ficar alarmado e cético sobre qualquer consultoria que eles derem em educação em qualquer lugar”.
Não é sem razão que o anúncio do contrato entre a Prefeitura de Porto Alegre e a Alvarez & Marsal provocou críticas também na academia. Um grupo de professores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de outras instituições, contrário à privatização da reconstrução gaúcha, propôs em manifesto, entre outras medidas, que o governo do estado crie uma fundação de estudos estratégicos responsável pela geração de estatísticas e por análises essenciais para a boa condução das políticas públicas.
Como igualmente fica claro em reportagem da Revista Forum, a grande questão, diante do cenário da tragédia, é como ficará a participação popular, já que a terceirização do processo e das soluções de reconstrução para consultorias privadas implica o esvaziamento do necessário debate democrático em torno desses assuntos.
O que se observa, a partir desse conjunto de preocupações, é que não faz sentido que a reconstrução do Rio Grande do Sul, longe de procurar incorporar a participação popular e ensejar uma reflexão sobre o modelo econômico que contribuiu para a crise, tente buscar o atalho fácil, ilegítimo e antidemocrático das consultorias privadas.