Um dos temas que têm acendido controvérsias na regulamentação da reforma tributária diz respeito à participação de procuradores estaduais e municipais frente aos órgãos de julgamento do Comitê Gestor do IBS.
A partir de nossa experiência perante o Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Distrito Federal (Tarf-DF), pretendemos oferecer algumas luzes ao debate, pontuando o relevante papel do procurador no controle de legalidade do crédito tributário e na prevenção de litígios judiciais custosos ao contribuinte e ao Estado.
Num modelo similar ao proposto pelo PLP 108/2024, que regula o julgamento administrativo do IBS, no Tarf-DF, o procurador exerce dupla função: de defesa jurídica do ente público e de fiscal da aplicação correta da lei.
Segundo a Lei Distrital 4.567/2011 (art. 91), “a Fazenda Pública será representada junto ao TARF por integrantes da carreira de Procurador do Distrito Federal”.
Os procuradores do Distrito Federal lotados no Tarf, de um lado, têm a atribuição de emitir pareceres sobre os recursos interpostos pelo contribuinte e as remessas de ofício, opinando acerca da correta solução do caso à luz do ordenamento vigente. De outro lado, têm a competência para interposição dos recursos necessários à defesa jurídica do ente público.
A primeira atuação é exercida de forma ordinária (o opinativo da fazenda pública ocorre na quase totalidade dos processos, de forma escrita e/ou oral) e a segunda ocorre de modo excepcional, quando decisão desfavorável à fazenda pública se mostra contrária à adequada aplicação da lei.
Nesse modelo, procuradores (representantes fazendários) e julgadores (conselheiros representantes do fisco e dos contribuintes) atuam em plena sintonia, de forma cooperativa e harmoniosa. Ainda quando não seguido, o parecer da fazenda pública é sempre considerado de forma atenta e respeitosa, e frequentemente é incorporado como razão de decidir nos votos condutores.
Os procuradores agregam ao julgamento informações atualizadas sobre aplicação da lei nos Tribunais Superiores e conferem um olhar essencialmente jurídico às questões de direito material e processual postas ao debate. Por sua parte, os julgadores, dotados de grande qualificação técnica e operacional na aplicação da legislação tributária, estão preparados para, coletivamente, emitir uma decisão imparcial que confira o correto destino ao crédito tributário, à luz da legalidade.
Aliando a segurança e a precisão jurídica que o opinativo da fazenda pública oferece, com a expertise técnica e altamente especializada dos conselheiros julgadores, o contencioso administrativo tributário tem o potencial de exercer com plenitude a missão de ouvir o contribuinte na realização do controle de legalidade.
Esta é, aliás, a grande virtude do processo administrativo fiscal: garante o escrutínio de legalidade do lançamento tributário, ao tempo em que oferece ao contribuinte a oportunidade de defesa, sem qualquer custo (taxas ou honorários sucumbenciais) e mediante a suspensão da exigência da cobrança do tributo.
Note-se que tal objetivo está alinhado ao princípio da autotutela dos atos administrativos: se a administração tem o poder e dever de controlar a legalidade de seus atos, anulando-os quando eivados de vícios que fulminam sua validade jurídica, cabe-lhe franquear ao administrado o direito de indicar potenciais ilegalidades.
Nesse contexto, a participação dos procuradores é uma importante chave para o adequado controle da legalidade do lançamento tributário. Afinal, as procuradorias são os órgãos responsáveis por realizar a consultoria jurídica dos entes federados, e, por isso, estão habilitadas a esclarecer à administração pública acerca da adequada aplicação da lei (art. 132 da CF). E mais: por serem as procuradorias locus por excelência da representação judicial da fazenda pública, ninguém melhor que elas para municiar os tribunais administrativos de orientações atualizadas quanto à aplicação da lei no Poder Judiciário.
Ainda que a competência dos tribunais administrativos seja mais restrita que a dos órgãos judiciários (não lhes cabendo realizar controle de constitucionalidade), tem crescido a adoção de precedentes vinculantes no contencioso administrativo fiscal, a exemplo do que ocorre por expressa disposição legal, desde 2019, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Não é de surpreender que o PLP 108 tenha dedicado uma seção ao tema, determinando a obrigatoriedade de observância, no processo administrativo tributário, dos precedentes vinculantes dos tribunais superiores, salvo elementos para distinção ou superação (art. 91 do projeto original).
Todavia, é fundamental que o juízo de aplicação dos precedentes passe pelo crivo das procuradorias fiscais, órgãos que atuam diuturnamente entre o Judiciário e a administração tributária. O conhecimento acerca da jurisprudência e a correta aplicação dos precedentes não é tarefa singela. As decisões judiciais em matéria tributária são profusas e constantes. No STJ, existem hoje 265 temas repetitivos sobre direito tributário, número superado apenas pelo direito processual civil.
Nesse cenário, os advogados públicos, dotados de competência e prática no exercício dessa função essencial à Justiça, são os profissionais certos para identificar e discernir a incidência – ou não – dos precedentes judiciais em cada caso levado a julgamento administrativo, prevenindo litígios fadados ao fracasso e evitando o dispêndio de recursos humanos e financeiros escassos.
Sucede que o PLP 108 não assegura o assento como representante das Fazendas Públicas junto às Câmaras, com exclusividade, às procuradorias (vide art. 109 do projeto original). Em patente inconstitucionalidade (arts. 131 e 132 da Constituição da República), estende essa função de representação extrajudicial e defesa jurídica da fazenda pública a agentes externos à advocacia pública.
E note a incongruência: o art. 91, § 4º, do PLP 108 (projeto original), estabelece que “a autoridade julgadora, antes de decidir pela vinculação, ouvirá a representação fazendária competente sobre a identidade entre a matéria tratada no processo administrativo tributário e os atos vinculantes descritos neste artigo”.
Ora, considerando que referido dispositivo trata de aplicação de precedentes judiciais vinculantes ao contencioso administrativo, não se pode interpretar representação fazendária como sendo qualquer outra carreira que não a de procurador de estado e de município.
Até mesmo porque representantes das carreiras de auditoria tributária não têm como obrigatoriedade a formação em Direito e tampouco a eles é atribuído o papel de representação do ente público e de assessoramento jurídico, função de Estado típica das carreiras jurídicas de Procuradorias (art. 132 da CF), e que, por isso, estão em contato direto com a interpretação das leis nos tribunais superiores.
Assim, é importante que se corrija no art. 109 do PLP 108 original, até por paralelo ao art. 91, § 4º, que a representação fazendária seja exclusivamente representada por procuradores, tal como ocorre no Tarf-DF.
No fim, todos têm a ganhar com a relação cooperativa e harmoniosa entre procuradores e julgadores na defesa da legalidade tributária: como mostra o exemplo virtuoso do Tarf-DF, a atuação da representação fazendária significa menos litígios judiciais e maior assertividade jurídica das decisões administrativas, beneficiando os contribuintes, a higidez do sistema tributário e toda a sociedade.