A solidariedade na reforma tributária e a reconstrução do sistema fiscal

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“Não são os filósofos, mas os cidadãos e as cidadãs que, em sua grande maioria, precisam estar intuitivamente convencidos dos princípios da constituição”.[1] As lições de Habermas parecem estar longe da realidade. No mundo cada vez mais explicado por especialistas, a linguagem se torna uma barreira para a compreensão da norma. A linguagem, pois, tão necessária para comunicação e transmissão do conhecimento, está cada vez mais distante do mundo da vida. Em certos ambientes, poucos entendem o discurso. Em consequência, essa ausência de compreensão abre oportunidade para que uns poucos direcionem a norma para interesses muitas vezes não tão transparentes.

Por outro lado, em um mundo inundado por informações difundidas em redes sociais, em que o leitor vira escritor na velocidade de um clique, a informação superficial circula com a autoridade de quem explica o mundo real. Uma aparência que prejudica a compreensão normativa e ilude o cidadão e a cidadã mais desavisados. Um paradoxo.

O Direito Tributário – em especial a atividade tributária do Estado – está nesse contexto. Ao mesmo tempo que a complexidade, no sentido que lhe atribui Edgar Morin, lança seus efeitos sobre a tributação, a linguagem se torna mais complicada e menos compreensível para o cidadão e a cidadã. Mas, deveria ser o contrário. Com a proximidade da norma em relação ao mundo real, a linguagem do especialista deveria ser mais compreensível para os destinatários dessa mesma norma. É, por isso, dentre outras razões, que devemos buscar reconstruir socialmente o sistema tributário.

O Direito Tributário, como qualquer objeto do conhecimento, sofre a influência de diversas outras ciências. E assim deve ser, uma vez que o Direito Tributário não é tudo que existe no mundo. Ele é um fragmento de tudo aquilo que existe, em um contexto científico. Assim, a própria tributação, enquanto atividade do Estado, deve estar aberta a outras influências. Isso porque ela não é uma atividade isolada de todas as outras que o Estado possui. Mas, não significa aceitar argumentos anacrônicos, que procuram colocar a tributação em uma restrita função de arrecadar recursos para prestar serviços. Argumentos que colocam a tributação fora da responsabilidade do acontecer social.

Nessa lógica, pois, há quem pense que a tributação não tem responsabilidade sobre a miséria no mundo. Assim, pouco importa se um sistema tributário existe em um país há mais de meio século e a situação continue miserável, com o aumento do distanciamento entre ricos e pobres. Pouco importa se na prática a tributação – ou não tributação – permite aumentar a riqueza de alguns e a pobreza de outros. Pouco importa se alguns pagam muito menos impostos que outros e concentram mais riqueza. Nessa forma de pensar o Direito Tributário, a realidade em si é problema de outros campos do conhecimento.

O pensamento nessa mesma lógica, contudo, muda quando a norma contraria interesses específicos de grupos de pressão. Quando o poder tributário procura equilibrar o sistema com a redução ou revogação de benefícios fiscais de empresas que não necessitariam do privilégio, seja por serem ineficientes, ou mesmo autossuficientes, na velocidade da luz, surgem discursos para defender a inconstitucionalidade da norma.

Em um cenário de redes sociais, em que cada indivíduo tem seu próprio meio de propagação de informação, termos como “voracidade fiscal”, “pretensões arrecadatórias”, “retóricas pragmáticas”, “afastar investidor”, “sanha arrecadatória”, “fuga de capital”, “imposto é roubo”, são comuns nesses discursos.

A situação se complica, ademais, quando as expressões são institucionalizadas em discursos acadêmicos, políticos e judiciais. Decisões judiciais, por exemplo, veiculam tais termos, ainda quando o contribuinte não tem razão, o que contribui para propagar a falsa ideia de que o Estado fiscal é o inimigo ou o grande vilão.[2]

Discursos acadêmicos, por sua vez, propagam críticas às ideias inclusivas, plurais e solidárias, como se estivéssemos na era das grandes guerras, em que se pretendia derrubar o poder autoritário. Esses discursos estimulam, assim, uma forma de pensar antissistema, perigosa em tempos de radicalização e espaços semipúblicos.

Uma forma de pensar o direito tem se destacado, para sermos mais específico. Essa forma de pensamento jurídico, a qual denomino de escola do “formalismo exacerbado”, consegue ser mais formalista que o próprio pensamento kelseniano. Essa escola, pois, defende a exclusão do pluralismo valorativo do pensamento jurídico tributário, em especial a eliminação da solidariedade, mediante o uso de uma linguagem específica, fechada, determinista e formal.

Essa forma de pensar, ainda presa ao individualismo, e às origens do Direito Tributário antes do constitucionalismo, parte da premissa de que o poder tributário deve ser limitado a todo custo. Por essa razão, defende construções normativas que se baseiam em legalidade estrita, tipicidade fechada, conceitos fechados e deterministas.

Nessa visão, o constitucionalismo é resumido apenas a um único valor: segurança jurídica. Segurança de quem, deveríamos perguntar? A realidade do mundo da vida, contudo, permanece invisível, pois entendem que ela deve ser objeto da política, sociologia ou filosofia, assim como qualquer discussão axiológica.

Essa concepção, é preciso ressaltar, se revela contraditória, na medida em que só uma face do poder tributário merece toda essa restrição. A outra face do poder tributário, ou seja, aquela em que o poder decide por não tributar determinados setores e grupos, não sofre a mesma limitação. Assim, distribuições de altos valores de dividendos, operações financeiras isentas, deduções fiscais duvidosas, validação normativa de arranjos societários formais, benefícios fiscais para empresas privilegiadas não sofrem a mesma restrição interpretativa.

Ao contrário, essa visão legitima construções argumentativas simplistas para legalizar operações contábeis complexas que, da noite para o dia, fazem aparecer bilhões de reais em lucro para grandes empresas. Sem o exercício de qualquer atividade econômica nova. Sem a criação de qualquer emprego. Sem o pagamento de qualquer tributo. Uma nova fábrica de dinheiro.

Redução de gastos sociais, por outro lado, são enquadrados, pela ótica formalista, como essenciais para o desenvolvimento econômico. Mas, quando o assunto é reduzir benefícios fiscais para empresas ineficientes ou mesmo para aquelas que possuem condições de se autofinanciar, se armam “das garantias constitucionais dos contribuintes”. Ainda que a extinção de benefícios possa economizar bilhões de reais para toda sociedade ou se destinar a projetos sociais de inclusão, saúde e educação.

Na verdade, impera aqui o velho e falso dilema: privilegiar determinados indivíduos e acreditar que o livre mercado é justo por si só e, portanto, confiar que o aumento de riqueza dos mais ricos beneficiará toda sociedade. Ou, de outro lado, privilegiar toda a coletividade e redistribuir a riqueza nacional de forma justa e direta, com a reconstrução de uma estrutura normativa mais solidária (será que cashback é a melhor solução?).

Para complicar a situação, grupos de pressão frequentemente ameaçam a escolha pública. Em uma linguagem contemporânea, os chamaremos de “estrategistas”, fenômeno que tem relação, também, com a ideia de rent seeking, que podemos refletir em outra oportunidade.

O fato é que no Brasil incentivo fiscal virou “auxílio fiscal” à certas empresas e se distanciou bastante da ideia original. Determinadas empresas, no entanto, não sobreviveriam sem os auxílios fiscais. De outro lado, algumas são altamente lucrativas, com recordes em distribuição de dividendos, que deveríamos nos questionar sobre o motivo de receberem incentivos fiscais, já que podem se financiar com recursos próprios. Mas, ainda assim, a crítica formalista se ocupa de limitar o poder tributário apenas em uma de suas faces. Em alguns casos, com notórios equívocos acadêmicos, ao retirar do contexto premissas que defendem uma compreensão mais solidária da Constituição.

Natural, todavia, que assim ocorra, quando a compreensão é baseada apenas em aspectos formais, sem considerar o mundo real.  A forma, nessa visão, se qualifica como mais relevante do que qualquer outro fim constitucional coletivo, substrato real, ou mesmo de procedimento deliberativo. Isso, com efeito, anula importantes características de um procedimento deliberativo, tais como o desenvolvimento das estruturas normativas, imagens de mundo, regulações de conflitos e formação de identidades.

Todavia, como já dissemos, para algumas formas de pensamento jurídico, a compreensão não pode vir da reflexão axiológica, muito menos principiológica. Para a escola do formalismo exacerbado, por exemplo, a compreensão vem da simples leitura do texto, da literalidade, ou seja, nada existe que não esteja escrito determinada, limitada e expressamente. Mas, essa escola quase nunca discute se a forma adotada ainda tem conexão com o mundo da vida.

O formalismo exacerbado, pois, é um modo de pensar jurídico mais condizente com um Estado mínimo fiscal, em que as pessoas praticamente não necessitam do Estado. Em que as pessoas não necessitam de serviços públicos básicos – saúde, educação, segurança – porque conseguem satisfazê-los com seu próprio capital.

Essa forma de pensar, em verdade, se coaduna com um sistema egocêntrico de interpretação, próprio das sociedades arcaicas, em que os processos de aprendizagem entre os indivíduos não são socializados. Nessa perspectiva, a justiça ficou há muito tempo de lado. O lucro passa a ser mais importante, por si só, do que as pessoas, o que confunde o instrumento com o próprio fim. Ser milionário já não é suficiente: quem quer ser um bilionário, num mundo de miseráveis?

Defender “os contribuintes” passou, então, a ser uma missão. Mas quem são “os contribuintes”? Normalmente, o 0,01% do topo da cadeia econômica de rendimentos do país, com capital suficiente para direcionar a compreensão normativa. Por exemplo, um pequeno percentual de empresas que apuram pelo lucro real e necessitam de subsídios fiscais para exercerem suas cada vez mais lucrativas atividades econômicas.

Em boa hora, contudo, a reforma tributária ressaltou o aspecto solidário da tributação. Assim, a Constituição afastou-se do pensamento jurídico fechado, determinista e detalhadamente limitador do poder de tributar. A reforma tributária, pois, foi expressa em estabelecer no § 3º do art. 145 que o “Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente”.

Reparem na tríade: justiça tributária, cooperação e defesa do meio ambiente. Esses três princípios são a influência do art. 3º da Constituição na positivação do sistema tributário nacional. Como ali está expresso, são objetivos fundamentais da República, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

A positivação da Justiça tributária é o reconhecimento de que a ética deve nortear o poder de tributar e também o poder de não tributar. Por exemplo, o Estado não pode conceder incentivos fiscais, sem que o interesse público esteja identificado de forma transparente, seja no aspecto temporal, seja no aspecto material dos resultados. Assim, se o Estado Fiscal concede o incentivo fiscal com o objetivo de aumentar o número de empregos no setor, é preciso que isto esteja claramente referido e seja fiscalizado, tanto a implementação, quanto o resultado. Do contrário, seria uma intervenção indevida na economia, com prejuízo às empresas e aos setores que não possuem o mesmo auxílio.

Já a cooperação e meio ambiente nos alertam que o “outro” – aquele que se distingue do “eu” – é tão importante para a existência do “eu”, que devemos nos preocupar inclusive com quem ainda não nasceu. Uma preocupação constitucional de subsistência e intergeracional. Não se trata de caridade ou fraternidade, como a sociedade percebia a ideia em séculos passados.

Ao contrário, a Constituição deseja institucionalizar a solidariedade no sistema tributário, na certeza de que “caridade” e “fraternidade” não são atributos inerentes à essência do ser e precisam de organização consensual, com apoio em pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas dentro da estrutura normativa.

E o que a tributação tem a ver com isso? Já se disse no passado que a tributação tem o poder de destruir. Mas também já nos ensinaram que a tributação é o preço que se paga pela liberdade. Agora, podemos dizer que a tributação vai muito além disso, pois ela também tem o poder de reconstruir materialmente o sistema fiscal. Essa reconstrução tem amparo na solidariedade, ignorada tradicionalmente pelo ensino do Direito Tributário no Brasil, que pensa as categorias jurídicas a partir de determinações e limitações, ainda que por meio de pressupostos implícitos.

Em tempos fragmentados, em que espaços de diálogos jurídicos são apenas formais, em que somente os 0,01% se fazem representar, é urgente que novos atores sociais participem da esfera pública de debates relacionados à tributação, principalmente com uma visão solidária da Constituição. Só assim a reconstrução começará a ser possível.

[1] HABERMAS, Jürgen. Uma nova mudança estrutural da esfera pública e a política deliberativa. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: Unesp, p. 34, 2023.

[2] SANTIAGO, Julio Cesar. Discurso e ideologia no direito tributário. In: GOMES, Bianca Xavier; SANTIAGO, Julio Cesar; CAMPOS E SILVA, Ronaldo (org.). Estado, Igualdade e Justiça: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lodi. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 239-260.